domingo, 23 de junho de 2013

PEC 33, STF e consulta popular: a inversão da democracia

Paulo Ricardo Schier, doutor em Direito Constitucional, é professor do Mestrado da UniBrasil
artigo

A PEC 33 tem proporcionado inúmeros debates. Trata-se de proposta inconstitucional, sem dúvida, mas que impõe alguma reflexão. É certo que o Judiciário não é o guardião exclusivo da Constituição. Ele atua, nessa tarefa, ao lado dos demais Poderes, que também estão vinculados ao escopo de realização da lei fundamental. Por isso parece de extrema gravidade a falta de reação do Legislativo e do Executivo em face de decisões do STF que não refletem as suas compreensões constitucionais. Todavia, apesar de existir um compartilhamento de tarefas no âmbito da concretização constitucional, não é possível aceitar a proposta da PEC 33 no que tange a criação do instituto da consulta popular.
Nesse aspecto o problema parece não residir na violação da separação dos poderes, eis que não é um instrumento estático. Ele se adapta conforme a realidade social, política e histórica na qual se insere. É sabido que o sentido de separação dos poderes na França é muito diverso do adotado nos Estados Unidos. O próprio Brasil apresentou arranjos diferentes nesse setor. Tradições mudam. Arranjos institucionais consolidados, que são adequados em determinados momentos históricos, podem não ser eficientes em outros. E se é verdade que a separação dos poderes é cláusula pétrea, essa proteção alcança apenas o seu núcleo essencial.
Então, o grande problema da PEC reside, ao que tudo indica, na violação da democracia e do Estado de Direito. Tal PEC, no mérito, até pode ser adequada, como defendem alguns. Mas o que a deflagrou não possui legitimidade. Ela possui um vício de revanchismo e de golpe que são incompatíveis com o Estado de Direito. Além disso, no que tange a realização de consulta popular, parece tratar-se de tese democrática; só que não!
Sabe-se que nem sempre as decisões do STF são tomadas de maneira deliberativa. Aliás, o mesmo ocorre no Legislativo. Lá e aqui ainda o que se vê é a prevalência de uma democracia majoritária. Ainda se aprova, no Brasil, leis por voto de liderança ou por delegação interna corporis. Leis podem ser aprovadas com 18 votos (em comissões com 35 parlamentares). O STF não controla questões extremamente relevantes para possibilitar uma decisão que seja efetivamente deliberativa no parlamento por tratarem de questões interna corporis. Em relação ao STF não são poucos que sustentam que as decisões judiciais colegiadas não são deliberativas, mas apenas majoritárias. Normalmente não é possível saber a ratio decidendi do STF. É praticamente impossível afirmar que este ou aquele é o entendimento da corte constitucional brasileira. Simplesmente toma-se a maioria dos votos e está decidido. Por quais razões? Fica sempre um certo mistério.
Assim, sem efetiva democracia deliberativa, a proposta de consulta popular da PEC 33 poderá se transformar em mero campo de disputa dos meios de comunicação e daqueles que possuem fácil acesso aos canais de debate.
Para que um instituto de consulta popular fosse realmente legítimo, seria necessário que ele fosse realizado oportunizando amplo debate coletivo, nacional, entre os cidadãos, para que a resposta a ser dada pelo povo fosse fruto de uma discussão, deliberação, ampla, pública, robusta e não a mera constatação de posições individuais, como já se afirmou. Mas não é isso o que se vê por aqui.
Assim, é preciso confiar na democracia e na soberania popular. Mas insta salientar que a soberania popular não reside exclusivamente no parlamento, no Executivo e tampouco no Judiciário. As referidas instituições também são manifestações da soberania popular. Mas no Estado de Direito a soberania é da Constituição e de seus valores.
Nesse quadro, quando se fala em constitucionalismo, o Judiciário é quem assume o papel de ser o guardião dos valores constitucionais e da coerência do Direito, e, por isso, não é qualquer decisão que vale no campo da realização constitucional, mas apenas aquelas que respeitem a integridade do sistema. O papel do Judiciário é o de ser o guardião desses valores e dessa integridade. Por certo, como se disse, não é o único responsável por essa tarefa nem tampouco detém o monopólio sobre a “verdade constitucional”. Mas, usando a expressão de Dworkin, é ao Judiciário que cabe o papel de fazer valer determinados direitos como trunfos contra a maioria, eis que “a maioria não pode tudo”.
Então, numa hipótese de conflito institucional entre o Judiciário e o Parlamento, devolver a decisão para que o povo decida diretamente, pela maioria, é o mesmo que retirar o sentido de existência do Judiciário como Poder contramajoritário na defesa dos valores constitucionais. Se esses valores existem como “trunfos contra a maioria”, não pode a maioria ter competência para rever algumas decisões.
O instituto da consulta popular, assim, pode fazer subverter qualquer racionalidade jurídica das decisões judiciais na medida em que, na prática o STF terá que considerar, em seus julgados, os prognósticos sobre a opinião pública, tentando antecipar como seu posicionamento será aceito no futuro. Trata-se de uma inversão da democracia, eis que o órgão que existe para proteger certos valores contra maiorias sazonais e eventuais estará devolvendo a essas maiorias o poder de decidir sobre a legitimidade das próprias escolhas.
Alguns já afirmaram que “quem gosta da democracia não tem medo do povo”. Não é isso o que está em discussão aqui. A questão é que não se pode pressupor que qualquer decisão popular seja legítima num quadro de democracia majoritária e sem mecanismos hábeis para proporcionar decisões deliberativas.

Fonte: Gazeta do Povo

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