terça-feira, 26 de novembro de 2013

Um Rio de Janeiro dividido, forçando os limites para chegar ao mundo


Pessoas em uma noite de samba na praça Pedra do Sal, próximo ao projeto da nova área portuária do Rio de Janeiro

O acidentado percurso em uma van precária conduz ao topo do Morro da Providência, a favela mais velha do Rio de Janeiro. A última parada é uma praça pequena e silenciosa na qual existe uma loja de materiais de construção, um bar e uma dupla de jovens policiais ostentando coletes à prova de balas e fuzis de assalto, patrulhando a estação ainda não inaugurada do teleférico construído pelo governo municipal. Lá embaixo se vê o porto do Rio.

Estimuladas por dois imensos eventos internacionais - a Copa do Mundo do ano que vem e a Olimpíada de 2016 -, as autoridades locais estão se esforçando para reinventar essa cidade, cujo passado fica no terceiro mundo, e fazer dela uma economia de primeiro mundo.

No final de semana passada, começou a demolição de uma movimentada via expressa que corta a área do porto, abrindo espaço para uma esplanada de pedestres e uma nova linha de bonde.

Cidade brasileira de 'eterna beleza' cresce e enfrenta seu lado problemático

Eduardo Paes, o prefeito do Rio, está dizendo o que deveria sobre combater a expansão descontrolada, ampliar os sistemas de transporte coletivo, construir novas escolas e pacificar e integrar as favelas, que abrigam um quinto da população do Rio, ao resto da cidade.

Mas como ilustram os meses de protestos de rua que vem acontecendo no Rio, os ideais progressistas muitas vezes colidem contra problemas antigos e intratáveis, nessa cidade onde as diferenças de classe e a corrupção são quase tão inamovíveis quanto as montanhas. O Rio é uma cidade dividida em si mesma.

E a divisão é especialmente aparente no gargantuesco plano do prefeito para a reforma da região do porto, a um custo de US$ 4 bilhões, cujo objetivo é tomar uma área industrial de tamanho comparável à porção sul de Manhattan e enchê-la de arranha-céus, tornando-a o novo polo central do Rio globalizado.
Coração histórico da cidade, com raízes portuguesas e afrobrasileiras, uma mistura de armazéns, maquinaria pesada e velhos marcos históricos, o porto também abarca bairros como Morro da Conceição, Saúde, Gamboa e Santo Cristo: enclaves pobres e decaídos, mas ainda belos, de casas multicoloridas e ruas de paralelepípedos. Washington Fajardo, que assessora o prefeito sobre questões urbanas e preservação histórica, me mostrou o cais de pedra, para navios negreiros e imperiais, escavado recentemente perto do Morro da Conceição, e tornado parte do patrimônio histórico.

Mas o projeto de reforma da região portuária é acima de tudo uma grande jogada imobiliária comercial, um novo exemplo, se queixam os críticos, de um governo preso aos incorporadores imobiliários, com um novo Museu do Amanhã (o que quer que isso possa ser), projetado por Santiago Calatrava, o arquiteto do ontem, e ostentando a forma de um gigantesco isópode se contorcendo. Não existe um grande plano, nenhuma garantia de que aquilo que é bom e digno de preservação na área existente do porto não será sacrificado em nome de um mar de torres de escritórios.

As promessas recentes do prefeito de instalar duas mil unidades de habitação popular na área foram tardias e vagas, e feitas de forma a apaziguar os detratores sem irritar os investidores.

E enquanto o prefeito promove a consolidação em torno do porto reformado, o Rio se estende descontroladamente em direção ao oeste. Quilômetros de estradas, condomínios fechados, shopping centers e congestionamentos tornam a área conhecida como Barra da Tijuca cada vez mais difícil de diferenciar dos subúrbios de Dallas ou Fort Lauderdale. Os cariocas continuam a comprar dois carros e um apartamento na Barra, se tiverem dinheiro para isso, como se ainda vivêssemos em 1974.

No coração da Barra fica um símbolo dos gastos descontrolados e da divisão de classes do Rio, um novo centro de artes, a Cidade da Música, projetado pelo arquiteto francês Christian de Portzamparc, diante de um gigantesco shopping center que tem uma réplica da Estátua da Liberdade em sua entrada. Projeto começado sob o prefeito anterior, e tendo estourado em mais de 100% seu orçamento de US$ 250 milhões, o centro, perdido em meio a uma via de pesada circulação, causou protestos raivosos, e é acusado de estar fora de contato com a cultura e as necessidades reais da cidade.

Um complexo de teatros construídos em concreto sobre uma plataforma elevada, o centro pode ser a mais absurda das novas edificações da cidade em muitos anos. Contemplá-lo faz pensar na cena do concerto em Stonehenge do filme "This is Spinal Tap", na qual o projeto de um palco para um show de rock fracassa porque os construtores entenderam como centímetros medidas que deveriam ser metros - mas nesse caso com as proporções reversas. Pessoas envolvidas no projeto se queixaram a mim de que há seções inteiras de assentos inutilizáveis, porque não oferecem visão para o palco, e de palcos projetados de maneira inepta, bastidores sem camarins, imensos espaços abertos expostos ao vento, e escadarias para o nada.

Mais a oeste, a Vila Olímpica está acelerando a expansão da cidade, construída em um local que abrigará novos projetos de moradia de luxo depois dos jogos. O complexo ameaça desalojar a Vila Autódromo, uma favela estabelecida há muito tempo. Caminhei pelas ruas silenciosas e cheias de buracos da favela. Crianças saltavam sobre um trampolim quebrado; ouvia-se a música vinda de uma igreja; uma família me levou à laje de sua casa, para me mostrar, sobre as mangueiras e goiabeiras, uma vista da baía de Guanabara. Altair Guimarães, o presidente da associação de moradores, despertou de um cochilo em sua rede (ele trabalha no período noturno), meneou a cabeça e disse: "Não é preciso massacrar o povo para realizar megaeventos".

A história não é tão simples. Nos bairros operários da cidade, como Méier e Madureira, na zona norte, a cidade vem construindo novas clínicas, criando novas linhas de ônibus e construindo escolas. Visitei o Parque Madureira, uma área de 2,5 quilômetros de concreto e verde equipada com um gigantesco palco de samba e fontes, construído em um terreno liberado pela transferência de linhas elétricas de alta voltagem. O lugar mudou a vida dos moradores de um bairro apertado e desprovido de áreas verdes.

No Méier, visitei um antigo cinema onde Bob Dylan e Tom Jobim, o Dylan brasileiro, tocaram um dia, hoje transformado no Centro Cultural João Nogueira, com um multiplex, espaço para exposições e um terraço no topo. Velhos tomavam sol e adolescentes flertavam à sombra de uma treliça de concreto.

Mas em companhia dessas melhoras, outros projetos públicos não fazem sentido. Os conjuntos habitacionais do Minha Casa Minha Vida são construções sombrias e mal feitas de concreto que proliferam pela cidade, muitas delas bem a oeste, muito longe de onde os moradores transferidos costumavam viver. O Morar Carioca, um programa público que une arquitetos a moradores de favela e autoridades, e prometia soluções colaborativas para a reforma urbana. Os moradores da Providência, consultados como parte do programa, disseram querer ruas limpas e pavimentadas.

A cidade decidiu em lugar disso construir o teleférico, acompanhado por um plano inclinado e um cento cultural celebrando a vida da favela - três projetos que envolveram desapropriações. Muitos moradores agora lamentam os resultados do Morar Carioca.

"As favelas não são apenas lugares de pobreza cujos moradores são objeto de 'projetos de renovação'", aponta Jailson de Souza e Silva, fundador da organização social Observatório das Favelas. "Participação é essencial".

Mas essa continua a não ser a prática comum, por aqui. Representantes da comunidade da Providência obtiveram uma liminar judicial para retardar a construção do plano inclinado. Roberto Marinho, 38, presidente da associação dos moradores, trabalha como gerente de uma imobiliária no centro da cidade. A casa em que vive com a mulher e os dois filhos seria uma das edificações a serem demolidas.

"Temos uma varanda e um terraço, e o apartamento do Minha Casa Minha Vida para o qual querem nos transferir seria um grande retrocesso", disse Marinho. Favelas como a da Providência, incubadoras históricas do samba e do funk brasileiro, poderiam, de certa perspectiva, ser um modelo daquilo que o prefeito Paes advoga: enclaves diversificados, densos, organicamente desenvolvidos, de habitação de fato acessível - o oposto do Minha Casa Minha Vida.

Mas os teleféricos e atrações culturais, ferramentas padrão de muitos projetos atuais de renovação urbana, oferecem boas imagens para brochuras olímpicas e apresentações em PowerPoint, ainda que não sejam aquilo que os moradores da Providência, e do Rio, mais precisam. Conquistar o apoio da comunidade requer tempo. A colaboração surge lentamente.

O Rio tem pressa.

"Queremos um diálogo, uma conversa", foi como Marinho expressou. "Eles nunca nos ouvem de verdade".

Fonte: Folha de S. Paulo
Tradução de PAULO MIGLIACCI
MICHAEL KIMMELMAN
DO "NEW YORK TIMES", NO RIO DE JANEIRO

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