sábado, 15 de março de 2014

Por um pedaço de terra

A reforma agrária que Jango prometeu há 50 anos até hoje não veio. Equipe do DIA esteve no primeiro assentamento de sem-terra criado no Estado do Rio e constatou que permanecer na roça é um desafio tão grande quanto conseguir a sua posse

JULIANA DAL PIVA
Rio - Reforma agrária: na lei ou na marra. O lema entoado por grupos de trabalhadores rurais no Brasil desde o fim dos anos 1950 dava o tom da urgência da divisão da terra no país às vésperas do golpe militar em 1964. Repetido até hoje durante as ocupações de fazendas feitas por grupos como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o bordão mostra que a questão permanece.

Usina Cambahyba
Foto:  Maíra Coelho / Agência O Dia

Há 50 anos, no comício da Central, o presidente João Goulart anunciou que iniciaria o processo de reforma agrária em meio ao seu projeto das Reformas de Base. E foi além: assinou um decreto de desapropriação de terras localizadas às margens de rodovias, ferrovias e obras públicas.
“Estaríamos, sim, ameaçando o regime se nos mostrássemos surdos aos reclamos da Nação, que, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, levanta o seu grande clamor pelas reformas de estrutura, sobretudo pela reforma agrária, que será como complemento da abolição do cativeiro para dezenas de milhões de brasileiros que vegetam no interior, em revoltantes condições de miséria”, discursou Jango.
Vídeo:  Ligas camponesas
  1. Ligas camponesas

    • de Tv Odia
    • 9 horas atrás
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    Anacleto Julião, filho de Francisco Julião, narra um pouco da história da luta por Reforma Agrária no Brasil.
    • NOVO
Nos anos 1960, com cerca de 70% da população brasileira morando no campo, a medida atendia especialmente ao clamor das chamadas Ligas Camponesas, mas também alarmava diferentes setores tradicionais do país. De acordo com pesquisadores, o debate se tornou uma questão política desde que as leis trabalhistas beneficiaram os trabalhadores urbanos, mas não chegaram ao campo.
“As ligas se organizam em um momento em que nem se imagina que Jango iria ser presidente. Mas ele é o primeiro a propor e pensar uma política agrária”, explicou a pesquisadora Nashla Dahas, da Revista de História da Biblioteca Nacional. Durante o governo de Jango foram criados tanto o Estatuto do Trabalhador Rural, de 1963, como a Superintendência de Política Agrária (Supra), em 1962, que tinha como objetivo pensar políticas agrárias.
O antropólogo pernambucano Anacleto Julião, 62 anos, era um menino de apenas 10 anos quando dividia o tempo do pai, o famoso advogado Francisco Julião, com diversos camponeses diariamente. Ele cresceu em meio ao orgulho de ver o pai aclamado especialmente pelos moradores próximos do engenho da Galileia, localidade perto da cidade de Vitória de Santo Antão, a 100 km do Recife, onde surgiu a primeira Liga Camponesa. Mas também com o medo constante dos capangas que rondavam sua casa. 
“Lembro que ele subia nas pedras para fazer o discurso. Eram centenas e centenas correndo para ver o deputado Julião. Eles jogavam flores quando ele passava. As Ligas foram um fator decisivo e incentivador da criação dos sindicatos rurais no Brasil”, contou Anacleto.

Não demorou muito para outras Ligas se espalharem pelo país. No Rio, a principal surgiu na região canavieira de Campos dos Goytacazes. Mas o anúncio de Jango sobre o início do projeto de reforma agrária precipitou a sua própria derrocada. “O decreto ainda tinha que passar no Congresso. A assinatura foi um ato simbólico para apenas marcar uma passagem, mas foi o suficiente para assustar os setores latifundiários”, afirma a pesquisadora Nashla Dahas. Francisco Julião, que era deputado federal, foi cassado e preso e depois se exilou no México. Morreu em 1999. O filho conta que líderes camponeses estimam que 1.400 integrantes das Ligas foram assassinados nos seis primeiros meses após o golpe militar por fazendeiros da região.
Apenas com o fim da ditadura e o surgimento do MST a questão voltou ao debate. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) foi criado em 1970. De lá até hoje, foram distribuídas terras a 1.288.444 famílias. Mas, segundo o MST, o total está longe da necessidade. Só no ano passado, foram 32 assassinatos. “A reforma agrária está parada porque o governo Dilma tem aliança com o agronegócio”, afirmou João Pedro Stédile, um dos fundadores do MST.
Segundo o Incra, a presidenta Dilma Rousseff assentou nos três primeiros anos de governo 75.335 famílias. No mesmo período, Fernando Henrique Cardoso distribuiu lotes a 36.125; e Luiz Inácio Lula da Silva, a 245.062.
Falta apoio para agricultores
O agricultor Paulo Roberto dos Santos, de 55 anos, mal conseguiu terminar a 4ª série do Ensino Fundamental. Mesmo assim, não encontrou dificuldade alguma para escrever poesias sobre o mundo que vê a luta que vive. O seu feito fez com que os seus amigos passassem a chamá-lo de Paulo Poeta.
Ele mora no assentamento de Zumbi dos Palmares, o mais antigo do Rio e criado em 2000. O local também fica nas proximidades da cidade de Campos. Paulo Poeta é orgulhoso das laranjas, jabuticabas e das canas que planta. “Vendo a cana porque preciso. Mas acho coisa de latifundiário”, explica. 
Com o que produz, ele consegue juntar cerca de R$ 1 mil por mês, o suficiente para cuidar das duas filhas pequenas. Só não chega para terminar a casa que começou a construir desde que ganhou o lote em 2001.
“Isso aqui era puro mato. Cheguei aqui e tive que fazer tudo sozinho. O Incra joga a gente no lote e nunca cumpre o projeto de assentamento”, reclama.
De acordo com Paulo Poeta, cerca de 500 das 1.500 famílias desistiram e foram embora sem ocupar os lotes. Mas tudo, segundo ele, foi e ainda é difícil. A energia elétrica só veio três anos depois, quando a filha mais velha já tinha nascido, mas água potável não há até hoje. “Eu recebi uns R$1,5 mil em material para levantar a minha casa, mas isso não foi o suficiente nem para o telhado”, conta. 
Paulo também diz que não há apoio técnico ao produtor. Para ele seria necessária a ajuda para a venda do que é produzido no assentamento e a criação de um mercado para os agricultores. 
Mas ele também faz críticas à própria organização e condução do movimento depois que a terra é conquistada. “O pessoal ainda quer fazer tudo sozinho. No acampamento é difícil, mas a gente acredita. Quando ganha o lote, acaba desmobilizando, perde a união do grupo. Esse ano, perdi quase 5 mil abacaxis porque o companheiro que ficou de buscar as frutas para vender não veio”, critica o agricultor.
‘A água do poço artesiano não está boa para beber, tem ferrugem’
Sentado no banco em frente ao pequeno barraco de lona, madeira e papelão, o agricultor aposentado Alcides de Souza, 65 anos, mostra o exíguo espaço onde improvisou uma cama. Ele não se preocupa com a falta de banheiro ou em ter que dividir a cozinha com a vizinha do barraco ao lado. Para ele, o importante é que o sacrifício gere um pedaço de terra no fim do processo de desapropriação de uma das fazendas da Usina Cambahyba, na região de Campos. 
O aposentado representa uma das 140 famílias que ocupam o terreno desde 2011 e onde ficava o antigo pátio da usina. Para o agricultor, estar ali significa recuperar um espaço de sua própria família. Quando tinha 19 anos, ele foi funcionário do local .“Era muito serviço bravo. Morreu muito funcionário na caldeira. Eu carregava 60 quilos por vez. Era a noite toda embarcando açúcar no caminhão”, conta.
Antes dele, o pai e o irmão também foram funcionários. Ali, Alcides lembra que viu o pai mês após mês se endividar na venda dos patrões. “Não tinha dia certo para pagar. Às vezes só tinha vale. Muita gente pegava as coisas na venda e quando ia acertar a conta já não tinha salário. Tinha de tudo: roupa, remédio, carne. Meu pai foi um desses”, revela.
Poucos barracos à frente, vive Antônio Guimarães da Silva, 53, conhecido como Bigode. Ele começou a trabalhar no corte de cana aos oito anos . A árdua jornada junto com a família fez com que ele desistisse da escola. Há pouco mais de um ano ele também espera o seu lote como pagamento pelo sofrimento que passou. “Aqui não tinha mais o chicote, mas tinha o ‘me obedece’ ”, denuncia. 
Wander da Silva, 10, é neto do cortador de cana e nasceu quando a família ocupava outro acampamento próximo. Despejados há cinco anos, eles perderam tudo, até a casa de alvenaria, já erguida. Mas o pequeno não se recorda. “Meu avô diz que vai ganhar as terras e que tenho que ajudar ele a plantar”, conta. Em sua inocência infantil, também não mente. Quando a pergunta é sobre o que não gosta, Wander é direto: “Quando tem briga aqui. Fico com medo”, aponta.
A mesma situação é relatada pelo coordenador do acampamento, Antônio Carlos Barsotini. “Uma das coisas mais difíceis é a convivência com essa demora ”, admite. No ano passado, o principal coordenador foi assassinado por outro integrante do acampamento, que queria assumir a liderança.
Mas as disputas já geraram outras vítimas. O MST já fez várias tentativas de ocupação do complexo das seis fazendas nos últimos 13 anos, e 18 integrantes do movimento morreram em conflitos decorrentes da disputa. 
Outro problema é a falta de água potável. “A água do poço artesiano não está boa para beber, tem ferrugem. Já pedimos, mas a Prefeitura de Campos não traz caminhão-pipa para as nossas caixas d’água. Temos que comprar”, diz o coordenador. 
Na lembrança dos ex-funcionário também estão relatos de que no regime militar corpos de guerrilheiros eram queimados nos fornos do local, como revelou o ex- delegado Claudio Guerra há dois anos. “Os antigos funcionários contavam que viam sangue sair por baixo dos carros”, afirma Antonio Guimarães da Silva.

Fonte: O Dia

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