domingo, 23 de março de 2014

Cenas Cariocas: Há vida sob os escombros da Piedade

Difícil ver alguém na rua. Nada acontece depois que o sol se põe

Rio - O sol das três da tarde bate forte no balcão onde a fórmica vai se descolando com o passar dos dias. E o calor aumenta mais quando as pás do velho ventilador jogam o ar quente para cima do freguês. A papelaria está às moscas, e a pergunta soa como uma ofensa: “Aqui ainda se tira xerox?” O homem do outro lado do balcão responde por cima dos óculos de grau: “Tira sim. Pode não parecer, mas ainda estamos vivos.”
Olhando ao redor, a resposta faz todo o sentido. É mesmo inacreditável que logo uma papelaria, cujos serviços são tão afeitos ao universo escolar, seja a única loja aberta nas cercanias do imenso fantasma da Universidade Gama Filho, em Piedade. Como a loja fica bem em frente ao portão principal do 
campus
 desativado desde o início do ano, a resistência em existir ganha ares de desafio. “Todos os dias abrimos as portas e damos de cara com esse defunto. Mas para nós a vida continua”, diz Lucia Mota, a dona da papelaria.
Vizinhos descrentes sumiram da Rua Manoel Vitorino, que mais parece cena de duelo em filme de faroeste
Foto:  Alexandre Medeiros / Agência O Dia
Para ela e seu marido, Renato Oliveira, o cara dos óculos de grau, a morte da Gama Filho foi mais que anunciada. Ao longo de 2013, o balcão da Qualicopy virou um muro de lamentações para professores, funcionários e alunos. As greves se sucediam, os salários atrasavam. Lucia lembra bem: “No fim de 2012, a gente já pressentia que a Gama não ia longe. E começamos a vestir o luto.”
Foi um velório duradouro. Para começar, Lucia deixou de fazer encomendas de material de papelaria. Os poucos empregados fizeram acordos para sair e não foram repostos. Até que Lucia e Renato ficaram sozinhos na trincheira. Duas outras papelarias na mesma Rua Manoel Vitorino, concorrentes da Qualicopy, fecharam as portas. Entre uma greve e outra, era no balcão do número 392, loja B, que os alunos vinham tirar cópias de apostilas, encadernar trabalhos. O pouco que entrava no caixa garantia a sobrevivência.
Fora isso, a Qualicopy foi uma ‘viúva’ muito regrada. E deve esse ar austero aos céus. A Gama Filho ainda dava os primeiros sinais de agonia e, desgraça pouca é bobagem, um temporal de fim de tarde presenteou o telhado da papelaria com um raio que atingiu em cheio a casa de força. Todas as máquinas copiadoras, encadernadoras e de plotagem foram para o brejo. Lucia não pensou duas vezes: pediu empréstimo em banco, quatro anos de pendura, e comprou máquinas novas. A última prestação vence agora em abril. 
“Foi um tempo de dinheiro contado, guardando cada tostão para ter uma reserva quando viesse o pior. Os vizinhos não acreditavam no fim, mas eu sabia que era só questão de tempo”, diz Lucia. Com máquinas novas, a Qualicopy atravessou a crise da Gama sem gastar com manutenção de equipamentos. E os vizinhos descrentes sumiram da Rua Manoel Vitorino, que mais parece cena de duelo em filme de faroeste. Só que ninguém espreita pelos vãos das janelas. 
Difícil ver alguém na rua. Nada acontece depois que o sol se põe. O Botekim da Gama, na esquina da Rua Martins Costa, ainda coloca na porta a placa de “almoço universitário” a partir de R$ 9,50. Força do hábito, pois não há mais um só aluno que almoce ali. Conhecido como o “point dos universitários”, o bar chegava a vender 90 caixas de cerveja às quintas e sextas, quando as mesas enchiam a calçada até 22h. Tinha até garçom. Hoje, não chegam a duas caixas por dia, e o expediente acaba às 16h.
Se parece que tudo acabou, é hora de começar do zero. A Qualicopy agora oferece pela internet serviço de álbuns de fotos. Lucia fez curso, comprou material, pretende vender para empresas brindes de fim de ano. Enquanto isso, aceita encomendas de encadernação e vende a conta-gotas o estoque de papelaria. Uma moça encosta no balcão, será que veio comprar régua ou compasso? Nada. “Aqui nessa rua não tinha uma loja de informática?” Tinha. E dois restaurantes, três lanchonetes, outras duas papelarias, dois salões de beleza, três estacionamentos...
Na parede da Qualicopy, a poeira vai cobrindo os compassos e as réguas de madeira, coisa fina de arquiteto ou engenheiro. A mercadoria não tem serventia para jornalista, cujo destino é conceber linhas mal-traçadas. “A gente vai acabar vendendo a lote, nem que seja para não jogar fora”, diz Lucia, e aí se nota a única ponta de mágoa na voz firme que atravessou mais uma tarde na resistência.
A tarde vai indo embora, é hora de fechar as portas. Mas, ao menos para esses dois guerreiros, só até amanhã

Fonte: O Dia

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