"O policial, diante de uma atividade ilegal, pode agir ou não agir. O corrupto vê isso da seguinte forma: ele pode não agir e ainda ser pago por isso"
Em grande parte das operações do Gaeco, há policiais entre os denunciados. A impressão é de que há agentes corruptos em todas as atividades criminosas. É essa a sua constatação?
Quando o grupo foi criado, em março de 2010, não era esse o foco. Mas hoje isso é verdade, e percebemos que, no decorrer das investigações, nosso trabalho sempre tangencia de alguma forma a ação de policiais envolvidos com o crime. Trabalhamos muito com os organismos policiais, o que demonstra uma vontade crescente de se eliminar o mau policial. São as corregedorias que nos dão subsídios.
O senhor vê uma razão para que isso aconteça com tanta frequência?
Essa é uma resposta complexa. O que podemos dizer é que o policial detém um enorme poder: o de não fazer. Um exemplo clássico para isso é o tráfico de drogas. A venda de drogas existe, é um fato. Mas dificilmente o tráfico de drogas ganharia esse formato, essa força, se não houvesse no mínimo a conivência de determinados policiais. No Rio, isso se transformou em um grande problema. O policial, diante de uma atividade ilegal, pode agir ou não agir. O corrupto vê isso da seguinte forma: ele pode não agir e ainda ser pago por isso.
Há o temor de que os milicianos possam assumir mais essa modalidade de crime e operar o tráfico. Isso já ocorre?
Assim como os traficantes, a milícia objetiva lucro e domínio territorial. Eles operam basicamente tudo o que possa dar dinheiro. Vans, gás, água, roubo de sinal de TV a cabo e distribuição ilegal de serviço de internet. Mas sempre dentro de um território determinado. Por isso, qualquer um que tente vender algo que a milícia já vende, enfrenta problema. Talvez não seja a hora de falar de milicianos que vendem drogas, e isso ainda parece ser algo pontual. Mas como sabemos, a milícia quer dinheiro. E droga dá dinheiro.
A corrupção policial não é uma exclusividade brasileira.
Esta é a forma como o crime organizado atua no mundo todo. Fizemos recentemente um seminário com participação do procurador-geral antimáfia da Itália. E uma das conclusões a que se chega, comparando os cenários, é de que em qualquer parte do mundo o crime, para crescer, recorre a agentes públicos.
Mais uma vez, as milícias são uma preocupação no período eleitoral. De 2010 aos dias de hoje, como esse cenário evoluiu?
Houve desde então uma mudança de percepção da sociedade que é fundamental. De 2010 aos dias de hoje, a milícia deixou de ser percebida como “mal menor” do que o tráfico, para ser vista como uma real ameaça à segurança pública. Afinal, as milícias têm geralmente o envolvimento de agentes públicos. A grande dificuldade está principalmente na força econômica dessas quadrilhas. No Rio, eles exploram transporte alternativo, venda de gás. Tentamos sufocar o lado financeiro. São investigações mais complexas, que envolvem sequestro de bens. As milícias não são compostas só por policiais, mas as mais conhecidas eram comandadas por agentes da lei. Vemos hoje que normalmente há algum policial, bombeiro ou agente público em posição de liderança.
Qual é a diferença, para um promotor, quando se lida com o crime organizado?
Nosso grupo foi criado basicamente como uma equipe antimilícia. No Rio, inicialmente nosso trabalho se concentrou em Jacarepaguá, Campo Grande, Santa Cruz e áreas onde havia grupos fortes de milicianos. Mas nós não escolhemos o que vamos fazer: recebemos solicitações dos promotores que identificam necessidade de reforço nesse sentido. Nosso poder de ação está diretamente ligado à integração com grupos de outros estados. Hoje, todos os estados têm os seus grupos contra o crime organizado, que trabalham de forma integrada quando necessário. Quem está no Gaeco é sempre instigado a fazer cursos de inteligência. Bimestralmente, palestrantes são chamados para falar sobre assuntos como milícia, PCC, grandes eventos, lavagem de dinheiro e interceptação telefônica. As milícias, claro, continuam a ser um foco importante.
Há uma corrente que defende, para a melhoria das instituições policiais, uma fusão entre polícia militar e polícia civil. Qual sua opinião sobre isso?
Pessoalmente, sou contra a unificação. Nos Estados Unidos, um único crime pode ser investigado por diversos organismos policiais, que se comunicam e podem, cada um, exercer sua melhor competência. Em termos de crime organizado, existe algo que chamamos de “hesitação do criminoso”. É um conceito usado aqui pela primeira vez pelo delegado Cláudio Ferraz, com quem investigamos as milícias no início da formação do Gaeco. Hoje, se um policial militar leva dinheiro do tráfico, ele não sabe se pode ser investigado pela Polícia Civil, pela própria Polícia Militar, pelo Ministério Público ou pela Polícia Federal. Em uma instituição unificada, o corrupto tem mais condição de saber se há uma investigação contra ele. Termos uma separação das polícias, para isso, é melhor. Elas acabam se fiscalizando.
Por que, então, as polícias não melhoram?
Vejo várias melhorias em curso nas polícias. As instituições têm uma evolução paulatina, pois não há como fazer saltos nesse processo. A principal mudança está no fato de as polícias quererem procurar formas de combater os maus policiais.
Outra crítica frequente à estrutura atual diz respeito às polícias militares. As regras e os códigos dos quartéis são compatíveis com a democracia nos dias de hoje?
Não tenho rigorosamente nada contra o fato de a polícia ostensiva ser militarizada. O problema não é a militarização, mas a necessidade de evolução, algo que não está restrito à PM. Partimos de uma fase problemática em termos de democracia, e as PMs vieram se adequando à nova realidade. Antes, o PM era o invasor. Nos dias de hoje, o que se tenta fazer é transformar esse invasor em um servidor. É esse o conceito central das UPPs, por exemplo.
Fonte: Veja
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