segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Tropa de Aniz Abraão David contou com torturador da Casa da Morte


Porões da contravenção: Policial acusado de tortura é nome de praça em Nilópolis

Aniz Abraão David controlou durante anos a escola de samba carioca Beija-Flor
Foto: Frederico Rozário / Arquivo O Globo
Aniz Abraão David controlou durante anos a escola de samba carioca Beija-Flor Frederico Rozário / Arquivo O Globo
RIO — Do terror sofrido nos três meses que passou na Casa da Morte, o centro clandestino de torturas montado pelos militares em Petrópolis, a memória de Inês Etienne Romeu gravou, entre outros momentos, o dia em que dois agentes tramaram seu assassinato. Em depoimento à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) anos depois, a militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e única sobrevivente da casa contou que a cilada foi combinada por Pardal e Laurindo, codinomes de dois dos seus carcereiros: “Pardal disse a Laurindo: Logo que desça do carro em alta velocidade, ela não terá tempo de ver o que lhe acontecerá”, recordou-se, no relato que relevou ao país a existência daquele dispositivo militar.
As listas de torturadores identificam “Laurindo” como o então comissário de Polícia Civil Luiz Cláudio Azeredo Vianna, um dos 16 torturadores cujos nomes ou codinomes aparecem no depoimento de Inês, “hóspede” da casa entre maio e agosto de 1971. Pesquisa feita pelo GLOBO, 42 anos depois, confirma que o policial servia ao Centro de Informações do Exército (CIE) no mesmo ano, tendo antes passado pela delegacia de Petrópolis. Luiz Cláudio, porém, era mais do que um verdugo da repressão. Ele também serviu às fileiras da contravenção, como lugar-tenente do bicheiro Aniz Abraão David, o Anísio da Beija Flor, e lhe garantindo salvo conduto na construção do poder que tem até hoje na Baixada Fluminense.
‘Aniz conta com cobertura policial’
Os militares sabiam da vida dupla de Luiz Cláudio, mas não o aborreceram. A “Informação n° 2283 - C/78”, de 14 de julho de 1978, produzida pela 1ª Divisão do Exército, na Vila Militar, e difundida pelo Centro de Informações do Exército (CIE) e pelo Serviço Nacional de Informações (SNI) sobre Domingos de Freitas, um possível candidato a deputado estadual pelo MDB naquele ano, diz que Anísio utilizava como cobertura para “negócios ilícitos” policiais e políticos corruptos. No item 4, o documento alerta: “Aniz Abraão David conta também com a cobertura policial do seu cunhado Luiz Cláudio Azeredo Vianna (delegado de polícia), atualmente titular da Delegacia de Alcântara-RJ, bem como do seu compadre Sérgio Rodrigues (também delegado de polícia, ex-titular do DPI-Niterói-RJ)”.
Ainda comissário no fim dos anos 1960, Luiz Cláudio encheu os olhos dos militares ao chamar para si a perseguição a integrantes de organizações da esquerda armada na Baixada Fluminense. Sua dedicação não apenas lhe valeu a requisição pelo CIE e o codinome “Laurindo” como a missão de integrar a equipe de torturadores da mais secreta masmorra militar, onde teriam sido mortos mais de 20 presos políticos. Sua ficha exibe elogios do CIE, comandado pelo temido general Milton Tavares de Souza, em novembro e dezembro de 1969 e em maio de 1973. Também exibe um elogio do chefe de gabinete do ministro do Exército em dezembro de 1969.
Luiz Cláudio, promovido a delegado em 1976, também encantou o clã liderado por Anísio. Frequentador da quadra da escola e da própria casa do bicheiro — já que sua mulher, Amélia Abdala, era tida como integrante da família —, o policial viraria nome de praça em Nilópolis, quatro anos após sua morte. Em 6 de outubro de 2006, pelas mãos do prefeito Farid Abraão David, irmão de Anísio, o ex-torturador deu nome à praça na esquina das ruas Mário Silva e Manoel Dias, em Olinda, homenagem ao “renomado cidadão nilopolitano”. Seu filho, também Luiz Cláudio, o Zabura, atuou como gerente de Anísio em pontos de bicho na Baixada.
Conhecido em Nilópolis como Doutor Luizinho, foi vice e depois venerável da Loja Maçônica União de Iguassu. Era discreto e pouco falava sobre os serviços prestados à repressão e ao bicho. Na poucas vezes em que se referiu ao regime, disse a um colega ser ligado ao general Coelho Netto (em 1969, coronel). Luiz Cláudio foi dono do haras Rancho Xodozinho, em Marapicu (Nova Iguaçu), local investigado pela polícia no caso do assassinato do jornalista Alexander von Baumgarten, que tentou chantagear o SNI, mas seu nome não foi envolvido.
Luizinho era amigo de Joel Crespo, subcomissário de polícia na delegacia de Petrópolis, quando o titular era Mauro Magalhães, no anos 1970. Joel é um dos denunciados no processo por extorsão na quadrilha formada por agentes do Destacamento de Operações de Informações da Rua Barão de Mesquista (DOI-I), integrada por Capitão Guimarães. Amigo de Anísio, o comissário levou para a contravenção o filho, o também policial civil Paulo Crespo. Por conta da amizade, Paulinho assumiu um papel de destaque nas organizações de Anísio nos anos 1980, controlando pontos de jogo.
Policial controlava pontos de jogo
Paulinho seria acusado, em carta deixada pela ex-mulher de Anísio, Eliane — morta em 1991 junto com o namorado, Hercílio Cabral Ferreira — de ser um dos assassinos de Misaque e Jatobá. Vinte anos depois, na Operação Dedo de Deus (2011), Paulinho teve conversas grampeadas e, numa delas, reclamava de ter perdido espaço no grupo de Anísio. Em Nilópolis, é sabido que ganhou uma indenização do bicheiro e perdeu os pontos que controlava.
Publicamente, a carreira policial de Luizinho, iniciada em 1955, foi a maior parte do tempo passada em delegacias da Baixada Fluminenes e da Região Serrana, onde Anísio construiria seu império. Ingressou como escrivão de polícia em junho de 1955, foi promovido a comissário em outubro de 1964 e a delegado em julho de 1976. Em 1969, foi lotado no gabinete do ministro do Exército (onde serviu no CIE) e, em 1970, na Delegacia de Petrópolis. No ano seguinte, voltou ao gabinete, onde ficou até 1974, quando foi para o Departamento de Ordem Política e Social (setor Sul).
Na época, a Polícia do Exército da Vila Militar era responsável pelos bairros vizinhos ao quartel e por todos os municípios da Baixada Fluminense. Luiz Cláudio, então comissário, é identificado em reportagem do “Jornal do Brasil”, de 12 de janeiro de 1969, como coordenador de cinco equipes da Polícia Civil e do “serviço secreto do Exército” na perseguição ao ex-pracinha Roberto Emílio Manes, apontado como chefe de uma organização de terroristas e considerado um estrategista sem medo.
Luiz Cláudio foi escolhido pelo então secretário estadual de Segurança, Francisco Homem de Carvalho, para unificar a força-tarefa na perseguição a Manes. Em 1985, Maria Célia Soares Manes, mulher de Manes, e seu filho, Sérgio Ubiratã, acusaram os então capitães Paulo Malhães e Ari Pereira de Carvalho de torturá-lo no Pelotão de Investigações Criminais (PIC), em 1969, em sessões com a participação de Luiz Cláudio, do detetive Nelson Belício, de um delegado de Nova Iguaçu conhecido como Pepe Legal, e dos sargentos Paulo Cabral e Sérgio Mazza.
— Na tortura, eles encenavam como uma peça de teatro. Luizinho e Mazza faziam o papel de “amigos”, enquanto Malhães e Cabral eram os “vilões”. Tentei esconder que estava grávida, mas acabaram descobrindo numa sessão de choques em que meu filho pulou na barriga como se fosse sair pelo meu umbigo – informa Maria Célia, cujo bebê nasceu surdo.

Fonte: O Globo

Nenhum comentário:

Postar um comentário