quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Piauí produz retrato demolidor de Cabral

Edição/247 Fotos: Reprodução:
Escrito pela jornalista Daniela Pinheiro, conhecida pela pena afiada, o texto revela os "mandos e desmandos de Sérgio Cabral, o governador mais impopular do País"; na entrevista, ele falou até dos voos de helicóptero do cachorro Juquinha.  “E o Juquinha, pelo amor de Deus, é um cachorrinho desse tamanhinho, e é do meu filho”, disse ele. “Sempre foi voo de família, meus filhos junto. Nunca foi só babá com cachorro. É segurança da minha família"


Quer saber como Sérgio Cabral se transformou no governador mais impopular do País. A resposta está no perfil escrito pela jornalista Daniela Pinheiro. Leia abaixo:

Na boca do povo

Antes e depois dos protestos, os mandos e desmandos de Sérgio Cabral, o governador mais impopular do país

por DANIELA PINHEIRO

O visor digital indicou a chegada ao térreo, mas a porta do elevador permaneceu fechada. Seis pessoas se entreolharam. “É hidráulico?”, indagou o governador do Rio de Janeiro, Sérgio de Oliveira Cabral Santos Filho, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro. “Se for, é devagar mesmo.” O ascensorista apertava os botões da emergência e dos outros andares. Usou insistência e força. Debalde. Como era a autoridade máxima presente, Cabral governou outra vez: “Tenta o quatro de novo e vê se sobe.” Nada aconteceu. O vice-governador Luiz Fernando Pezão, que tem 1,90 metro de altura e muito mais de 100 quilos, enfiou os dedos de sua assombrosa mão direita no vão da porta. “Não força!”, disse Cabral. “Tô tentando abrir, porra”, objetou o outro. Ao seu lado, o presidente do Tribunal de Contas do Estado, Jonas Lopes de Carvalho Júnior, enxugou uma mina de suor que lhe banhava a raiz dos cabelos. “Eu tenho claustrofobia”, balbuciou bem baixinho, quase inaudível. A caixa de metal continuava imóvel como um enfezado black bloc da avenida Delfim Moreira.

Terminava uma manhã do final de setembro e o grupo de presos acabara de participar da abertura do seminário “Para a melhoria da governança pública”, organizado pelo Tribunal de Contas da União, em um auditório no Centro do Rio. Por meia hora, Cabral foi incensado pelos palestrantes. Disseram que sua gestão era exemplo de retidão fiscal, que era o único a submeter editais de licitação previamente ao Tribunal e que sua política de segurança pública servia de lição para o país.

De sua parte, o governador não se poupou elogios. À plateia, disse ter implantado na polícia bonificações por meritocracia, mencionou pagar a melhor hora-aula para professores esta-duais do Brasil e observou que, sob sua batuta, a economia do Rio crescera o dobro da nacional. Ressaltou haver 21 bilhões de dólares em investimentos no estado e garantiu que entregaria em três anos “mais metrô do que foi feito em vinte”. Em tom solene, pregou que o tripé legalidade–moralidade–transparência era a combinação de sucesso na administração pública.

Se um carioca recém-chegado de vinte anos no Ártico entrasse no auditório, jamais imaginaria ser Cabral o mandatário mais hostilizado e pior avaliado do país. Desde os protestos de junho, a aprovação a seu governo desabou de 45% para parcos 12%, segundo medição do Ibope. É um percentual inalcançado em décadas. O recorde ainda é de Fernando Collor de Mello, que tinha 9% de aprovação quando sofreu o impeachment. Contra Cabral, houve passeatas, depredação, tentativa de invasão de prédios públicos, saques de lojas, carros incendiados, ataques à polícia e um vagalhão de apupos que chegou até a avenida Paulista. Por quase cinquenta dias, manifestantes acamparam ao lado de seu apartamento no Leblon para pressionar por uma renúncia. Vizinhos se agitaram, exigindo sua mudança do bairro. Correligionários de longa data evitaram defendê-lo em público, caso do prefeito do Rio, Eduardo Paes. Em solenidades, Cabral passou a ser vaiado com entusiasmo pela multidão. Reeleito há menos de três anos em primeiro turno com 66% dos votos, a grande estrela do PMDB se viu impedido de sair às ruas. Parecia um calcinado corpo celeste caindo num buraco negro.

"É hidráulico ou não é?”, voltou a inquirir o governador. Vexada, a desembargadora Leila Mariano, presidente do Tribunal de Justiça do Rio, explicou que a engrenagem era velha e nunca fora trocada. “Eu já falei para a presidenta Dilma e ela vai ser uma das quatro testemunhas do processo que vou abrir contra o Cabral por insalubridade”, disse Pezão, provocando uma gargalhada desanuviadora – à exceção do magistrado Carvalho, que continuava mudo e suava em bicas. A porta se entreabriu. Parte do cocuruto de um bombeiro surgiu numa nesga sob os pés dos enclausurados. “Ninguém saia do carro, por favor!”, ele gritou, incitando mais risos. “Só se for voando”, disse Cabral, esticando o pescoço como um filhote de pássaro querendo sair do ovo. Depois de uma eternidade – três minutos, ao todo –, viu-se a luz do sol. “Só faltava eu ficar preso, né?”, disse o governador ao receber a lufada de ar quente vinda da garagem.

Era quase hora do almoço e ele estava atrasado para duas audiências no Palácio Guanabara. Acomodou-se no banco de trás do carro blindado, reclamou do calor e passou a relativizar as críticas contra si. “Ao contrário do que você diz, eu posso e estou saindo nas ruas”, falou, deslizando a mão pela gravata azul-cobalto, como se acariciasse o rabo de um gato. “Ontem mesmo fui a Seropédica, Vassouras, Mendes e fui muito bem recebido. Ando por aí direto e sou sempre bem acolhido.”

Mencionei que, na antevéspera, um coro de 85 mil pessoas o havia xingado por um longuíssimo minuto durante uma apresentação no Rock in Rio. Mais uma vez, ele contemporizou. “Ah, isso foi incitado por um cantor, um cara que faz campanha contra mim desde 1997”, disse, referindo-se a Tico Santa Cruz, vocalista da banda Detonautas, que puxou a multidão. “Isso é o Rio de Janeiro. Depende do lugar, do perfil das pessoas. Em 2010, eu me reelegi com faixas de ‘Fora Cabral’. O Rio não é trivial.”

O carro avançava pelo bairro do Flamengo e ele prosseguiu a análise sem solavancos. Em suas pesquisas, disse, jamais atingiu o percentual de impopularidade que lhe foi atribuído. “Nunca tive só 12% de aprovação. Variou entre 15, 18, 20. E esse número é velho também, já melhorou”, afirmou, escorrendo novamente a mão pela gravata. Na sua avaliação, o que parecia uma crise sem solução era fruto da exploração de um “imaginário popular” alimentado por adversários que “jogavam abaixo da linha da cintura”.

Havia os que chamou de “profissas de manifestação”, os sindicatos, os partidos políticos – como o Partido Socialismo e Liberdade e o Partido da República –, seus representantes, os black blocs, de quem não se conhecia exatamente a agenda, e os “formadores de opinião”. “É o pessoal que em 2006 fez campanha para a Denise Frossard, em 2008 e 2010 fez para o Fernando Gabeira, em 2012 estava com o Marcelo Freixo”, comentou. Parecia muita gente, disse, mas eram vozes isoladas. Para ele, a oposição soube reverberar com força a onda negativa produzida contra o governo, “mas é uma coisa que está decantando, que as pessoas estão discernindo a ironia por trás dela, vendo que são ataques que não ficam de pé”.

O carro parou em um semáforo vermelho. “A gente vê pelas pesquisas que, em relação à sucessão, não houve nenhum legatário das manifestações”, comentou Cabral. A situação estadual seria diferente do que havia ocorrido em âmbito nacional com Marina Silva, que, depois das jornadas de junho, ganhara musculatura como alternativa a Dilma Rousseff. “O Pezão está lá embolado com todos. Não tem nenhum candidato que passe dos vinte pontos. A diferença é que nós temos uma história de sete anos de mudança no estado. E as pessoas sabem disso”, falou. Ao cruzar os portões do Palácio Guanabara, Cabral concluiu: “Isso é um processo. Um governante democrático tem que entender. Há de se ter paciência e tolerância. Essa é a palavra: to-le-rân-cia.”

Numa tarde de agosto, o vereador e ex-prefeito Cesar Maia, do Democratas, despachava em seu gabinete na Câmara Municipal. Vestia uma camisa listrada de branco e azul e tinha uma gravata vermelha pendurada nos ombros como uma echarpe. Assertivo e focado, ele fala rápido, tem o olhar injetado e enormes fios de sobrancelha que apontam para cima como pequenas antenas. Rabiscava o verso de um papel com uma pesquisa do Instituto GPP. O levantamento de opinião pública mostrava que, três meses antes dos protestos, mais de 60% da população não sabia citar uma realização do governo Cabral.

Cesar Maia enumerou o recheio do “imaginário popular”, citado por Cabral. “Vamos lá”, começou, “gastos exorbitantes na festinha de sorteio da Copa do Mundo, construção de estádios, a boa vida, viagens para o exterior, ligações promíscuas com Eike, Cavendish, guardanapo, helicóptero, marquetagem, relação péssima com os servidores públicos, catástrofe na serra fluminense e ele sempre viajando, Amarildo, vídeo chamando menino de otário, escritório de advocacia da mulher.” Recuperou o fôlego e perguntou: “É bastante, não?”

Segundo ele, os protestos de junho afetaram a imagem de todos os políticos, mas a situação de Cabral era de outra ordem. “A passagem de ônibus foi um tipping point. Com ele, o que houve foi um processo cumulativo, foi a desfaçatez de anos, que estava represada, que veio à tona”, comentou. Para o ex-prefeito, Cabral virou o retrato acabado da ignomínia da política nacional. “Quando a população se vê à deriva, você tem que escolher sua Geni de estimação, um fato ou personagem para aglutinar e canalizar a revolta das pessoas. Ele foi fácil. Quem colecionou tanta impropriedade assim?”, perguntou.

Dali a alguns minutos, Maia participaria de uma votação em plenário. Levantou-se e fez o nó da gravata deixando o colarinho da camisa em riste, como a gola da capa de um vampiro. Em sua opinião, a situação de Cabral era irreversível e a tentativa de emplacar Pezão como sucessor, um devaneio. “Quando eu saí da prefeitura, eu tinha 25% de ótimo e bom e 35% de ruim e péssimo. Tinha uma campanha da TV Globo contra mim, a epidemia de dengue, tudo muito ruim, mas eu podia andar na rua. Ele tem 12% de bom e 50% de péssimo. Isso é mortal”, falou.

Primogênito do jornalista e crítico musical Sérgio Cabral, um dos fundadores do Pasquim, e da museóloga Magaly, Serginho – como é chamado na intimidade – teve uma infância de garoto de subúrbio. Nasceu no Engenho Novo e foi criado em Cavalcanti, onde jogava bola e soltava pipa na rua. A família se mudou para São Paulo quando o pai trabalhou na revista Realidade. De volta ao Rio, instalaram-se no Leblon. A casa era frequentada por sambistas e jornalistas cariocas de esquerda. Virou então um integrante da jeunesse dorée, que discutia comunismo no Arpoador.

Desde cedo, Cabral gostou de política. Escrevia no jornal da escola e discursava se houvesse três pessoas reunidas. Aos 15 anos, frequentava reuniões da Juventude Comunista e, aos 18, já militava no grupo jovem do Movimento Democrático Brasileiro – partido de oposição consentida na ditadura. No 2º grau, foi expulso do colégio por ter conclamado os alunos a montar um grêmio estudantil. Nessa época, participou da campanha de seu pai para vereador e foi um dos coordenadores do comitê que apoiou a eleição indireta de Tancredo Neves.

Foi quando conheceu sua primeira mulher, Suzana, com quem teve três filhos. Ela é sobrinha-neta de Tancredo Neves e filha de Gastão Lobosque Neves, proeminente empresário do ramo de minério em Minas Gerais. Cabral sempre teve uma diligente admiração pelo sogro e o clã Neves. Ficou muito amigo de um primo da mulher, Aécio Neves, com quem fumava nos fundos do avião que levava Tancredo aos comícios pelas eleições diretas à Presidência. Tornou-se inseparável de um tio de Suzana, o senador Francisco Dornelles, do Partido Progressista. É a ele a quem recorre em encruzilhadas políticas.

Formado em jornalismo sem jamais ter exercido a profissão, ele nunca cogitou outra carreira que não fosse a dos palanques, dos gabinetes, das viagens – de campanha ou não. Numa antiga entrevista, seu pai disse que “o Serginho gosta tanto de eleição que, se pudesse, ele se candidataria a papa”. Trabalhou no gabinete do pai na Câmara Municipal, mas vivia com conforto graças à família da mulher. Em 1987, aos 24 anos, Cabral assumiu seu primeiro cargo público. Foi nomeado diretor de Operações da Companhia de Turismo do Estado do Rio de Janeiro a pedido do sogro e do pai. Eles insistiram com o então governador Moreira Franco para que desse uma chance ao jovem e ambicioso aspirante a político. A aposta vingou. Em pouco tempo, Cabral implementou dois projetos que se tornariam sua marca registrada junto ao eleitorado: o Clube da Maior Idade e os Albergues da Juventude. Passou a ser adorado por velhinhos e mocinhos.

A profícua atuação à frente dos programas o levou ao PSDB e ao cargo de deputado estadual – para o qual foi eleito em 1990 com tímidos 12 000 votos. Aproximou-se do então prefeito Marcello Alencar – à época no Partido Democrático Trabalhista –, que contava com alta popularidade, diferentemente do que ocorria com o governador Leonel Brizola. “Quero ser um novo Marcello sem o Brizola para atrapalhar”, era o slogan de campanha de Cabral à prefeitura em 1992. Não deu certo e foi derrotado. A maior visibilidade lhe rendeu frutos. Em 1994 garantiu a reeleição para a Assembleia fluminense com 168 mil votos.

A essa altura, Sérgio Cabral já encarnava os atributos que vieram a defini-lo no futuro. Animado, adaptava-se como um Zelig a situações e pessoas. É dotado de uma dose de fanfarrice, que costuma soar simpática, quase sedutora, conferindo-lhe um ar eternamente juvenil. Aprendeu com o pai a contar piadas, a soltar bons mots, além de discorrer sobre boemia, samba, futebol e demais clichês da carioquice. Por outro lado, sempre cultivou o modo tradicional de ganhar votos: mandar cartões de aniversário para eleitores, não perder um baile da terceira idade, beijar crianças de colo, chamar prefeitos do interior de “meu querido”, contratar cabos eleitorais, tratar empresários como sumidades e atender pedidos de emprego.

Bom de palanque e de rua, criou uma série de frases para todos os gostos: “Meus filhos e minha família têm acesso à saúde e à educação e a maioria não tem. Isso é muito injusto”, falava com indignação à gente pobre. “A economia só se desenvolve se soltar a criatividade do empresário”, defendia junto a proprietários. “Sou a síntese social do Rio”, dizia a todos. Quando precisava, mencionava ter saído do subúrbio apenas aos 7 anos. Se outra situação pedia, lembrava que sua casa sempre foi frequentada por artistas e intelectuais. Em um terceiro cenário, podia se valer do parentesco torto com a aristocrática família Neves. Entre os pares na política, ele é tido como ambicioso, organizado, jeitoso e com afiada percepção de oportunidades. É considerado o mestre das evasivas. Um deputado estadual da base governista me contou que, quando o governador Cabral fala “Que maravilha, vamos nessa!”, quer dizer exatamente o contrário.

Em 1994, Marcello Alencar se elegeu governador e seu afilhado político conquistou a presidência da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Aos 31 anos, Sérgio Cabral se cobriu com o manto da austeridade e começou a coibir regalias. Nunca se esqueceu de avisar a imprensa dos seus feitos. Foi na frente de repórteres que apresentou o arsenal bélico apreendido com os seguranças de seu antecessor, o deputado José Nader, e a salinha secreta, dentro de um banheiro, que seria usada – dizia-se – para acertar pagamentos. Dispensou o motorista da Casa e ia para o trabalho dirigindo o próprio carro, um Voyage.

Teve uma atuação profícua e ruidosa. Conseguiu aprovar o fim da aposentadoria especial para parlamentares e estabeleceu um teto para o funcionalismo público. Também agiu para melhorar a vida de setores da população. Ajudou a implantar o Passe Livre para estudantes da rede pública, deficientes físicos e maiores de 65 anos. Firmou-se na opinião pública como “o novo”, “o austero”, e passou a contar com uma forte simpatia da imprensa local, sobretudo emissoras de rádio.

Dois anos depois, candidatou-se novamente à prefeitura. Na frente das pesquisas, Cabral dava como certa a eleição, já que seu principal adversário era o poste da vez: o desconhecido Luiz Paulo Conde, secretário de Urbanismo do prefeito Cesar Maia, do finado Partido da Frente Liberal. Durante a campanha, o deputado Miro Teixeira, candidato pelo Partido Democrático Trabalhista, acusou Cabral de ter embolsado diárias da assembleia para viagens jamais realizadas. Ele negou e atacou o adversário, chamando-o de “político velho e carcomido”. Os adversários revidaram dizendo que era a prova de que Cabral não gostava de velhos.

“A campanha foi toda errada”, disse-me um dos coordenadores de seu comitê eleitoral na ocasião, hoje parlamentar. “Ele parecia um mauricinho vazio, que estava ali a passeio.” Outro equívoco foi ter subestimado o poder de Cesar Maia, que acabara de inaugurar dezenas de obras pela cidade. Derrotado por Conde, Cabral ficou prostrado. Em momentos de crise, ele costuma se abater fisicamente. Tranca-se num quarto escuro, fica dias incomunicável com a cabeça soterrada no travesseiro, à base de calmantes.

Em 1998, Anthony Garotinho, radialista evangélico, foi eleito governador pelo Partido Democrático Trabalhista, numa ampla coalizão de legendas de esquerda. A campanha de Garotinho foi fincada na crítica à gestão de Marcello Alencar e, por consequência, à turma de Sérgio Cabral – sobretudo no que dizia respeito às privatizações. O governo vendera quase todas as empresas públicas estaduais – barcas, energia elétrica, trens urbanos e o Banco do Estado do Rio de Janeiro, o Banerj.

A um mês da posse de Garotinho, Cabral participou de uma gravação clandestina, que revelou um esquema de cobrança de propina na privatização da Companhia de Água e Esgoto, a Cedae, que acabou suspensa. A denúncia foi uma punhalada no peito de Alencar e reduziu a pó a sólida amizade e parceria que os unia dando início a um belicoso confronto diário pela imprensa.

É quando se toma conhecimento de uma novidade: Cabral havia ficado rico. Apesar de viver com o salário de deputado estadual, Cabral, segundo Marcello Alencar, tinha um patrimônio incompatível com sua renda. Pela primeira vez, soube-se da casa no condomínio Portobello, em Mangaratiba, um assunto sobre o qual o governador ainda hoje tergiversa. A propriedade, avaliada por corretores em 5 milhões de reais, tem as estruturas interna e externa feitas com divisórias drywall, toda importada dos Estados Unidos. À época, ele informou dar consultoria política a um publicitário, o que justificava seus rendimentos.

Há dois anos, a revista Época mostrou que, para quitar a casa, Cabral fizera empréstimos junto a seu chefe de gabinete, ao subchefe e a um assessor, que ganhavam um décimo do valor que disponibilizaram ao patrão. Também aparecia dinheiro do sogro e de Suzana Neves na negociação do imóvel. Em sua declaração de bens entregue ao Tribunal Superior Eleitoral, ele alegou que o valor da casa era de 200 mil reais.

Marcello Alencar ainda acusou Cabral de empregar parentes em cargos no Tribunal de Contas do Estado, incluindo seu irmão e sua segunda mulher, a advogada Marise Rivetti. Ele negou as acusações, xingou Alencar, condenou o nepotismo e apresentou provas de que os familiares eram assíduos. Dizendo ser “inviável” sua permanência entre os tucanos, Cabral rompeu com o partido e voltou à casa de origem, o PMDB-cansado-de-guerra, mas ainda com excelente apetite. A partir daí, aliou-se a Garotinho, o que lhe garantiu a continuidade à frente da Assembleia Legislativa do Rio. No ano seguinte, a investigação sobre a compra da casa de Mangaratiba foi arquivada na Justiça.

Foi no começo de 2001 que a advogada Adriana de Lourdes Ancelmo, então assessora da Procuradoria-Geral na Assembleia fluminense, conheceu seu futuro marido. Ela aguardava o elevador privativo quando o presidente da Casa, Sérgio Cabral, chegou com seu vasto entourage. A jovem se apresentou a Cabral, que ficou encantado com a morena de sorriso largo e atitude destemida. Ele estava em sua terceira união e ela era casada havia sete anos com um advogado, dono de um modesto escritório no Centro da cidade. Separaram-se e logo foram morar juntos. No ano seguinte, nasceu o primeiro dos dois filhos deles, que só vieram a celebrar oficialmente a união três anos depois, em uma cerimônia para 900 convidados no Copacabana Palace. A festa, cujo salão foi decorado com 4 mil dúzias de rosas vermelhas, foi retratada em seis páginas da revista Casamento. A lua de mel foi em Paris.

À frente da Assembleia, Cabral foi um fiel parceiro de Garotinho, garantindo maioria do plenário nas votações de interesse do governo. Em 2002, lançou-se ao Senado e foi eleito com 4,2 milhões de votos, a maior votação para o cargo na história do Rio. Morando em Brasília, longe da família, dos amigos, recém-casado e com filhos pequenos, Cabral detestou o novo trabalho. Aborrecia-se com a modorra e os conchavos no cafezinho do plenário. Quando podia, ausentava-se. Um levantamento da Mesa Diretora do Senado mostrou que, de 2003 a 2005, ele havia faltado a um terço das votações, ou seja, havia acumulado 178 faltas. O maior feito de seu mandato foi ter sido o relator do Estatuto Nacional do Idoso, o que lhe valeu mais admiração do antigo e fiel eleitorado.

Rosinha Garotinho sucedeu o marido e era a governadora em 2005. Sem poder disputar mais um mandato, o casal Garotinho, então no PMDB, resolveu apoiar Cabral para substituí-la no comando da Guanabara. Colocaram a estrutura do governo à disposição da campanha e, em troca, indicaram o vice na chapa, Luiz Fernando de Souza “Pezão”, ex-secretário de governo de Rosinha, ex-prefeito de Piraí, cidade que havia sido bombada com recursos dos cofres estaduais. Ali, Pezão promovera o que chamou de “revolução tecnológica” com wi-fi público gratuito.

O governo Rosinha contava com boa popularidade entre os mais pobres, mas era desprezado pela elite. Orientado por marqueteiros, Cabral passou a imagem de querer romper com a continuidade, sem enterrar os programas assistencialistas aprovados pelo povo. Adversários ressaltavam o enriquecimento mal explicado, a casa de Mangaratiba e sua atuação na Assembleia. “Quando ele foi presidente da Alerj, houve 66 CPIs, todas feitas só para achacar empresários”, disse à época Elder Dantas, vice na chapa de Denise Frossard, do PPS, sem apresentar provas.

Uma história me foi contada por três interlocutores distintos. Rosinha havia decidido se desincompatibilizar do governo para se candidatar ao Senado e garantir um cargo público. Com sua saída, assumiria o vice-governador e ex-prefeito, Luiz Paulo Conde. Às vésperas da saída, Cabral e Regis Fichtner – hoje chefe da Casa Civil do governo – apareceram na residência oficial durante a noite. Queriam convencer o casal para que Rosinha terminasse o mandato. De acordo com os relatos, Cabral disse que, se Conde assumisse, ele o trairia e acabaria com o projeto dos Garotinho – e dele próprio – de fazê-lo governador do Rio. Depois de uma longa conversa e a garantia de que continuariam parceiros no governo futuro, o casal topou a proposta. Rosinha ficou, Conde não assumiu, e Cabral foi eleito governador do Rio com mais de 5 milhões de votos.

No dia seguinte à eleição, Cabral não atendeu aos telefonemas de Garotinho. E não os atendeu nunca mais. A amigos, Sérgio Cabral nunca escondera seu desprezo pelo ex-governador. Eleito, livrou-se dele. De sua parte, Pezão também se afastou. Um ministro de Dilma Rousseff me relatou uma reunião do partido, na qual Rosinha chamava Pezão de “traidor” na frente de todos, ao que ele permaneceu calado. O casal Garotinho, que contava com secretarias e autarquias, como a Cedae, só fez nomeações no Departamento Estadual de Trânsito.

Durante o mandato de Cabral, o Tribunal Regional Eleitoral deixou os Garotinho inelegíveis e cassou o mandato de Rosinha como prefeita de Campos dos Goytacazes. A Justiça prendeu o chefe da polícia do governo de ambos, o deputado Álvaro Lins. Ele e Garotinho foram acusados de lotear cargos nas delegacias do Rio e condenados por formação de quadrilha. Dez entre dez observadores fluminenses enxergaram as digitais de Cabral nos processos contra o casal. O ódio entre eles é do tipo visto apenas em filmes preto e branco estrelados pela atriz Joan Crawford.

Ao assumir o governo do Rio, Sérgio Cabral acabou com a nomeação política para cargos na Segurança Pública, na Saúde e nas inspetorias da Fazenda. Formou uma equipe de perfil mais técnico, equilibrou as despesas do estado no primeiro ano e logo produziu um superávit nas contas, o que não se via fazia muito tempo. Ainda nos primeiros meses, duas barbaridades abateram o governo: a morte do garoto João Hélio, arrastado por bandidos num assalto, e a chacina do Alemão, na qual dezenove pessoas foram mortas pela polícia. O problema do banditismo, e sua relação visceral com a polícia e o tráfico de drogas, continuava insolúvel.

“Aí, acontecem as duas coisas mais importantes da vida do Cabral: a invenção das Unidades de Polícia Pacificadora, quando ele encanta a elite e a imprensa, e a proximidade com o presidente Lula”, disse-me o deputado estadual Luiz Paulo da Rocha, do PSDB. Desde o início, a ocupação das favelas pela polícia teve audiência de novela das nove. Na primeira página de O Globo, a entrada do Exército na Vila Cruzeiro, no complexo do Alemão, por exemplo, foi comparada à invasão da Normandia por tropas aliadas. Quando se anunciava a instalação das UPPs, o espetáculo era televisionado ao vivo, com direito a suíte no dia seguinte mostrando a nova realidade local. Houve uma queda significativa dos índices de criminalidade. Pela primeira vez em anos, a taxa de homicídios no estado ficou abaixo de trinta mortes por cada grupo de 100 milhabitantes – embora ainda superior à taxa de São Paulo, em torno de dez para cada 100 mil habitantes. A sensação de bem-estar da população era reforçada pelo noticiário entusiasmado com as realizações do governo.

Em paralelo, Cabral construiu uma ponte com o Palácio do Planalto, selando uma umbilical relação com o presidente Lula. “Foi um encontro de interesses mútuos”, lembrou um deputado federal petista. Para Lula, interessava ter um aliado na segunda maior capital do país, já que São Paulo e Minas Gerais estavam com os tucanos. De sua parte, Cabral estava interessado em verbas e investimentos, que viabilizariam obras e realizações em seu governo. Somou-se a isso a empatia entre o governador e o presidente, celebrada várias vezes em público. O Rio de Janeiro nunca recebeu tantas verbas de Brasília quanto no governo Lula.

Sérgio Cabral se apresentava como um governante atualizado, pragmático, pós-ideológico, com uma agenda modernizadora, inclusive no terreno dos costumes. Disse ser favorável à legalização das drogas e do aborto. Propôs à Previdência do Rio pagar pensão a casais homossexuais. Angariara prestígio, simpatia de jornalistas, dos patrões da mídia, do Palácio do Planalto, das organizações não governamentais. Finalmente se tornara um personagem nacional. Concomitantemente, sua imagem era vendida a peso de diamante por uma das maiores empresas de comunicação do país, a FSB, e, mais tarde, pela Prole, uma ascendente agência publicitária, que lidava com a propaganda institucional do governo.

Entre janeiro de 2007 e setembro de 2013, o governo Cabral gastou 715 milhões de reais na rubrica “Serviços de comunicação e divulgação”, de acordo com dados do Sistema de Administração Financeira para Estados e Municípios. “Isso é só o que foi gasto para divulgar o que ele fez no governo. É uma média de 100 milhões por ano, o equivalente ao orçamento anual inteiro de um município de pequeno porte”, disse o deputado tucano Luiz Paulo da Rocha.

Mesmo diante das viagens cada vez mais frequentes ao exterior, ou dos impropérios disparados em público – como chamar médicos faltosos de “vagabundos e safados” –, ele parecia reagir com naturalidade. “Sofro por estar fora, mas tenho que vender o Rio”, disse em uma ocasião. “O presidente Lula também é criticado por isso. Então, estou em boa companhia.” No final do primeiro ano de governo, Sérgio Cabral havia passado uma média de um a cada seis dias fora do Brasil. A euforia aumentou com a economia a todo vapor, as promessas do pré-sal, a Copa do Mundo, as Olimpíadas. O Rio voltou ao primeiro plano. Sem percalços, Cabral elegeu em 2008, em primeiro turno, seu candidato a prefeito da capital, Eduardo Paes. A amigos, ele nunca escondeu o sonho de ser o vice na chapa da reeleição de Dilma em 2014.

Corria o 23º dia do “Ocupa Cabral” na esquina da avenida Delfim Moreira com a rua Aristides Espínola, no coração do Leblon, o metro quadrado mais caro do país. A 100 metros do apartamento de Sérgio Cabral, seis barracas de camping, uma extensa cobertura de lona preta e outra tenda branca tomavam conta de parte da calçada e de uma faixa da avenida, criando um funil para o trânsito. No entorno, havia cadeiras, bancos, espelhos, isopores, uma quantidade industrial de cobertores sujos e embolados, faixas de protesto e uma caixa de som profissional conectada a um gato feito no poste de luz. Ouvia-se música eletrônica quase o dia inteiro.

Era um final de tarde e cerca de trinta pessoas davam conta da rotina diária do acampamento. Um rapaz magro, sardento e articulado, apresentou-se como Bruno Cintra, mais conhecido co-moBruno Ruivo. Um dos coordenadores do Ocupa, ele segurava o livro Constituição Federal para Concursos e teclava em um iPad, cedido aos manifestantes por um estudante da Pontifícia Universidade Católica, morador do Leblon. Cintra me mostrou o histórico dos dias de ocupação, organizado como numa tabela Excel, e depois contou como nasceu o movimento. Segundo ele, no final de junho, “o Pepe, o Maicon e o Zeca” estavam em um bar e assistiam a um pronunciamento de Dilma Rousseff em rede nacional. “Uma hora ela mencionou a baderna em relação aos protestos. Aí, eles falaram: ‘Baderna? Vamos dar uma lição neles’”, contou. No mesmo dia, divulgaram pela Mídia Ninja e pelas redes sociais que se instalariam na porta do governador. O maior dos atos organizados por eles reuniu 4 mil pessoas na rua de Cabral. Dez dias depois, a polícia desmontou as tendas na marra e prendeu um dos que protestavam.

Em menos de um mês, eles estavam de volta. Dessa vez, sem previsão de ir embora. Um rapaz com o capuz preto do moletom enterrado na cabeça interrompeu a conversa. “Me dá aí o iPad, meu”, disse. “Combinei de encontrar uma mina, libera aí para eu ver se ela mandou mensagem no meu Facebook.” A contragosto, Ruivo lhe passou o tablet. Uma dupla de jornalistas italianos fotografava tudo. Outro repórter, um afegão com uma filmadora a tiracolo, aproximou-se e Ruivo se dirigiu a ele em inglês fluente. Cintra me disse ser estudante universitário e morar na Zona Sul com o irmão, que “tinha trabalho, todo certinho”.

Passaram pelo acampamento estudantes, desempregados, indolentes, trabalhadores, curiosos, mendigos, adictos, sem-teto, moradores dos vizinhos Morro do Vidigal e da Rocinha, rebeldes com e sem causa, neo-hippies, militantes de partidos e os black blocs. No auge da ocupação, a população flutuante chegava a quarenta pessoas de dia, reduzia-se à metade durante a madrugada e dobrava nos fins de semana. Dividiam-se em grupos: segurança, mídia e mobilização, limpeza, estratégia política e materiais. Cintra era da estratégia política. Um rapaz, chamado de Islã, era o chefe da segurança. Usava jaqueta de couro preta mesmo nos dias mais quentes e ficava sentado horas a fio em uma cadeira de praia.

Eles haviam feito um acordo com os seguranças do Posto 12, em frente à praia, para, por 50 reais por dia, usar o banheiro e o chuveiro à vontade. Ao público em geral, custa 2,80 por pessoa a cada vez. As baterias dos celulares eram carregadas em portarias de prédios da orla por zeladores, que se ofereciam para a tarefa. Na hora das refeições, contavam com doações de vizinhos ou cada um se virava para comer o que desse.

O dia passava na modorra. Conversavam entre si, falavam para as câmeras da mídia alternativa sobre qualquer coisa o tempo todo, pediam dinheiro para motoristas, iam até o mar, voltavam com olhos vermelhos, rindo muito, entoavam gritos de guerra contra Cabral, dançavam como numa festinha ao ar livre. Boa parte do tempo era usada para discutir uma maneira de engrossar algum protesto ou cultivar o desprezo por inimigos comuns: a imprensa – as Organizações Globo, em particular –, o governo e o capitalismo. A maioria fazia questão de parecer enfastiada com a presença dos jornalistas. Como uma Greta Garbo voluntariosa, a black bloc conhecida por Emma, que estampou a capa da revista Veja, dispensava pedidos de entrevistas. “Não tenho mais nada para falar.” Por três vezes, perguntaram-me se eu era da “mídia burguesa”.

Luiza Dreyer tem 23 anos, estudou no tradicional Colégio Santo Inácio, mora com a mãe no bairro do Flamengo e trancou a faculdade na PUC. Estava acampada desde o primeiro dia e, uma vez por semana, voltava para casa para pegar roupas limpas ou “lavar o cabelo direito”. Ela estendia camisas e shorts masculinos em um varal improvisado, preso a duas árvores no canteiro da avenida. “Olha o tanto de coisa que conquistamos. O Cabral voltou atrás em várias decisões porque fomos lá e brigamos. Isso mostra nossa força. Agora ele vai ter que dizer cadê o Amarildo!”, disse, referindo-se ao sumiço do ajudante de pedreiro, que se suspeitava ter sido morto por policiais na Rocinha. Perguntei se pensavam que o movimento poderia se institucionalizar e, eventualmente, virar um partido. “Não estamos pensando nisso agora. O objetivo hoje é efetuar as mudanças e tirá-lo do governo.” A moça, que também era assídua da Marcha das Vadias, disse que a mãe ficava preocupada com sua ausência, mas que “agora entendia a importância de participar dos protestos”.

Um carro da Globosat ficou preso num extenso engarrafamento na Delfim Moreira. “É a Globo, é a Globo, vamos lá!” Uns saíram correndo, outros pegaram balões a gás recheados com tinta, um black bloc tirou um spray laranja de dentro de uma barraca. “Foda-se a Globo!”, ouvia-se. Minutos depois, voltaram com ar satisfeito. Contaram ter pichado todo o carro e disseram que o motorista havia ficado com medo. “Falamos para ele que não era nada pessoal”, explicou-me um rapaz magro de barba por fazer.

No final da tarde, apareceu Ernesto Fuentes Brito, guru dos acampados, que usava uma boina a la Sierra Maestra. Filho do historiador Elinor Mendes Brito – um dos setenta presos políticos trocados pelo embaixador suíço Giovanni Bucher, sequestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária, em 1970 –, ele tem 36 anos, nasceu no Chile, onde o pai ficou exilado e é professor de biologia. Estava desempregado havia três meses. “Fui demitido por minhas ideias, mas também porque eu queria uma vida mais libertária”, contou. Desde então, havia passado a organizar atos e manifestações pela cidade contra o governo Cabral. Ele contou manter um apartamento na Zona Norte, cujas despesas de manutenção eram pagas com suas economias. “Eu tenho uma reserva”, disse-me.

Sentado na calçada, Fuentes apontou um black bloc que rebolava agachando-se até o chão ao som da Gaiola das Popozudas em companhia de outros cinco manifestantes. “Veja aquele garoto.É negro, pobre, encontrou um lugar para ser libertário e viver como quer”, disse, professoral. “Ele não é morador de rua. Ele escolheu morar na rua, é diferente. Isso é um ideal, é muito importante.” Oblack bloc começou a gritar “Vai se foder” para um carro. “Peralá, isso não!”, Fuentes lhe chamou a atenção de longe. “Foi mal, foi mal”, respondeu o rapaz.

Por alguns minutos, o professor passou a discorrer sobre a luta de classes e como a imprensa, os bancos e os governos têm uma agenda que jamais beneficiará a maioria. De um utilitário preto, um playboy segurando uma latinha de cerveja buzinou e acenou para os manifestantes. “É isso aí! Fora, Cabral!” Com um sorriso contido, Fuentes comentou: “Isso é bem Bertoldo.” Fiz cara de interrogação. “Bertoldo Brecht. É a coisa do motorista e do patrão. Quando bebe, fica legal e justo, é capaz de oferecer a filha para o motorista. Mas quando baixa o teor do álcool, o abismo social volta com força”, disse em referência à peça O Senhor Puntilla e Seu Criado Matti. “Quando a elite bebe, vem aqui, abraça a gente... Depois, quer distância”, concluiu.

Um ônibus se ateve no engarrafamento e um passageiro passou através da janela uma faixa em que se lia “Fora, SérgioCabral e Eduardo Paes. Respeitem o povo!”, o que provocou uma ovação dos manifestantes. O painel foi instalado entre as barracas. Em meia hora, doze carros pararam e deram alguma contribuição em dinheiro para o grupo.

No começo da noite, mais de cinquenta pessoas circulavam pelo local. Aproximou-se um garoto de 20 anos, usando jeans, tênis e carregando uma mochila. Chamava-se Bruno, era estudante de geografia da puc e estava cansado da “vida burguesa”. Durante vinte minutos, entoou uma cantilena de problemas com o pai rico, que não aceitava que ele fizesse geografia, que sua vida era vazia e superficial. Fuentes ouviu com atenção e, ao final, o aconselhou a voltar para a faculdade. Logo em seguida, um homem negro lhe trouxe um copo de café quente. Era funcionário da obra do metrô, a 500 metros dali, e dormia todos os dias no acampamento. “Ele mora em Nova Iguaçu. Ganha 100 reais por dia e gasta 27 de passagem, não vale a pena voltar para casa. Antes de a gente estar aqui, ele dormia sob uma marquise. Agora, está aqui com a gente”, explicou Fuentes.

Luiza Dreyer apareceu com a expressão de felicidade. Havia disponibilizado sua conta bancária pessoal para doações e tinham feito um depósito de 700 reais. De quem? “Não sei, colocaram! Ótimo, vamos fazer vários investimentos em arquitetura aqui, comprar mais barracas e botijões de gás”, comentou. Todos os acampados com quem conversei durante os quatro dias que estive no Ocupa Cabral negaram receber pagamentos de grupos ou partidos políticos. “Falar que recebemos de alguém é uma maneira baixa de desmerecer nossa ação”, comentou Fuentes.

A reeleição de Cabral teve o clima de verso de Baudelaire: lá, onde tudo é ordem e beleza/ luxo, calma e volúpia .As UPPs eram uma vitrine mundial e sombreavam os baixos índices nas áreas de saúde e educação. Porém, a conjuntura estava diferente. Afastado da vida política para tratar do câncer na laringe, Lula já não era um parceiro presente. De sua parte, Dilma nutria pouca simpatia pelo jeito galhofeiro do governador. Lembrava-se com desprezo de um vídeo gravado no Carnaval em que apareciam juntos – ele, bêbado, enrolando um inglês incompreensível –, quando ela ainda era candidata. Ela gostava era de Pezão, que considerava sério, competente e trabalhador.

Havia pegado muito mal o sumiço de Cabral quando das enchentes de janeiro de 2011 na serra fluminense, que mataram quase mil pessoas. No ano anterior, diante da mesma tragédia, ele só tinha aparecido dias depois, quando culpou a prefeitura dos municípios atingidos. Mas, ainda que a economia desse os primeiros sinais de que iria desandar, Cabral conservava a maré de estabilidade. “Aí acontece o incontrolável, o inesperado, o que abalou tudo: o acidente de helicóptero na Bahia”, lembrou o vereador Cesar Maia.

Em junho de 2011, Sérgio Cabral, familiares e amigos tomaram emprestado o avião particular do empresário Eike Batista para ir à festa de aniversário do empreiteiro Fernando Cavendish, que tinha contratos de mais de 1 bilhão de reais com o governo, parte deles sem licitação. O governador vivia um momento de euforia, sobretudo na vida pessoal. A turma desembarcou do jato de Eike em Porto Seguro, na Bahia, e pegaria um helicóptero até Trancoso, um voo de dez minutos. Como havia muitos convidados, os homens deram prioridade às mulheres e crianças. A aeronave caiu no mar cinco minutos depois da decolagem. No acidente, sete pessoas morreram. Entre elas, a namorada do filho do governador; a cunhada, Fernanda Kfuri, e a mulher de Cavendish, Jordana; e o filho dela, o menino Lucas Kfuri de Magalhães Lins, neto do executivo José Luiz de Magalhães Lins, figura destacada da elite brasileira, articulador político e responsável pela consolidação do Banco Nacional, que, com sua saída, foi à bancarrota.

A criança era o alento do patriarca, que lidava com outra tragédia particular. O pai do menino – seu filho predileto, José Luca – sofria de um grave câncer. A notícia da morte da criança devastou os parentes. Logo depois do acidente, os Magalhães Lins chamaram o advogado carioca Nelio Machado para uma reunião na casa da família no bairro do Humaitá. Parte deles queria responsabilizar criminalmente Sérgio Cabral e Fernando Cavendish pela tragédia. Naquela mesma noite, desistiram da ideia. Destruído pela perda do filho único, José Luca chegou a interromper o tratamento de quimioterapia. Um ano e meio depois, ele sucumbiu à doença.

À medida que as notícias e os corpos iam sendo encontrados em alto-mar mais detalhes vinham à tona. Soube-se que o voo foi feito à noite, chovia, havia densa neblina e o piloto do helicóptero estava com o brevê vencido havia cinco anos. Também que a mulher de Cabral, que estava no Rio, ignorava a viagem. O governador foi ao enterro da nora e depois se isolou em Mangaratiba. Como resposta institucional à tragédia, baixou uma norma para si próprio: lançou com alarde um Código de Conduta Ética para o servidor público regulamentando a proibição de receber presentes e vantagens no exercício do cargo.

“O acidente desnudou o que sempre foi a principal característica do governo dele: a relação promíscua entre o público e o privado”, comentou o deputado estadual Marcelo Freixo, do PSOL, em uma tarde recente. “O Cabral é um psicopata, que não tem sentimento de culpa por nenhuma das coisas bizarras e absurdas em que ele se envolve. Ele se comporta como se não fosse nada com ele.” Logo em seguida, Cabral e Adriana Ancelmo homologaram o divórcio, que durou quarenta dias. No outro ano, o casal renovou os votos numa cerimônia no Palácio Laranjeiras, cujos padrinhos postiços foram Lula e Dilma, que estavam na cidade para uma solenidade pública.

Quase um ano depois, em abril de 2012, o deputado federal e ex-governador Anthony Garotinho publicou em seu blog uma série de fotos, tiradas em Paris, quando Sérgio Cabral, acompanhado de uma comitiva de 150 pessoas, desembarcou na capital para receber a Legião de Honra pelo Senado francês. Nas fotos, Fernando Cavendish aparece abraçado a secretários de estado com guardanapos amarrados na cabeça. Em outra série, Cabral e a turma dançam funk ou algo do gênero agachados em frente a um cantor. Noutra, Cavendish, o empresário George Sadala, concessionário do Poupatempo no Rio e em Minas, mais os secretários de Saúde e de Transportes (Sérgio Cortes e Wilson Carlos) estão no restaurante do hotel Ritz de Paris. Há também a cena das respectivas mulheres exibindo a sola de sapatos da grife Christian Louboutin.

Depois de quase um mês em silêncio, Cabral respondeu não manter relações escusas com o empreiteiro, seu amigo de longa data.

"O pior é que o Sérgio Cabral foi o melhor governador que o Rio já teve”, disse Jorge Picciani, presidente do PMDB fluminense, durante um jantar em um restaurante na Barra da Tijuca, em agosto. “Essas críticas são injustas. Ele tem sensibilidade social, um histórico de melhorias para a população, para o Rio e para a democracia. Essa coisa mesmo de acabar com voto secreto, ele fez isso na Assembleia há muitos anos”, comentou.

Alto, corpulento, com bochechas macilentas e voz gutural, Picciani lembra um personagem de desenho da Pixar. Calado, parece mais ameaçador do que quando conversa, em tom amistoso e gentil. Tinha o cabelo cortado à escovinha, usava jeans, camiseta, blazer de linho e um mocassim branco. Ele é considerado “o dono do PMDB do Rio”.

O problema de Cabral, segundo Picciani, era mais complexo. “A pessoa física interferiu na jurídica”, disse. Passando os olhos no cardápio, ele comentou: “Eu sou da roça. Eu não gosto de viajar. Esse negócio de 200 pessoas, bebida, deslumbramento. Ali foi o novo-riquismo, a soberba”, falou. Ele classificou de “falta de sorte” a amizade de Cabral com Cavendish, que tinha negócios com o bicheiro Carlinhos Cachoeira. “Uma empresa que estava estabelecida no Rio muito antes do governo dele”, afirmou.

Na avaliação de Picciani, a imagem do governador será recomposta em breve, mas é preciso uma mudança urgente na maneira de vender sua imagem. “Os programas de tevê dele são um horror. A gente combina uma coisa, sai outra”, comentou. Na véspera, a propaganda do PMDB estadual mostrou obras, tratores, trabalhadores, túneis. Não se fez menção ao nome ou à imagem de Cabral. Segundo Picciani, o combinado era comparar o governo Cabral com o de Benedita da Silva, do Partido dos Trabalhadores, usando imagens do traficante Fernandinho Beira-Mar rindo ao ser preso. “Ia mostrar como mudou a segurança. Isso é o que melhora a imagem dele! Aí, você liga a tevê e é tudo o contrário”, disse. Os programas são feitos pela agência Prole, a mesma responsável pelas inserções de Aécio Neves, e aprovados pelo governador.

Picciani passou a se mexer na cadeira como se tivesse sido acometido por uma crise de coceira. “Ai, esse sapato estava me apertando demais”, disse, aliviado, ao se livrar de um deles por debaixo da mesa. Falou-se sobre as manifestações populares contra o governo e ele afirmou que os acampados na rua de Cabral eram financiados por partidos políticos, como o PR e o PSOL. “É coisa paga, encomendada. Os adversários se aproveitaram dos protestos nacionais e se uniram.”

O Partido dos Trabalhadores, segundo ele, havia estimulado a maré de críticas. Com a queda de Cabral nas pesquisas, o senador Lindbergh Farias, do PT, aproveitou o momento para impor sua candidatura à sucessão, ainda quea aliança nacional entre os dois partidos se esfacelasse no Estado. “Eu estou doido para que eles rompam conosco aqui no Rio”, disse Picciani em tom de blague, referindo-se ao PT. “Porque estou louco para apoiar o Eduardo Campos”, comentou, sarcástico, na saída do restaurante.

Quando entrou no amplo gabinete no Palácio Guanabara, Cabral leu em voz alta uma notícia estampada na tela do computador de sua mesa. “Ixi... ‘Atirador de Washington ouvia a voz de Deus’... Ai, meu Deus”, comentou. Ele se dirigiu a uma grande porta e, como um Luís XIV em seu Versalhes particular, empurrou-a deixando os dois braços estendidos na altura do peito. “Olha que bonito esse jardim. Foi restaurado por nós”, disse-me. Uma larga aleia de centenárias palmeiras imperiais circundava um chafariz com a imagem de Netuno e esculturas de crianças montadas em peixes num idílico cenário emoldurado por Mata Atlântica nativa. “Vamos dar uma volta”, sugeriu.

Aos 50 anos, Cabral emagreceu, está bronzeado, mantém o senso de humor aguçado e o indefectível sopro juvenil. Durante a caminhada, ele enumerava as conquistas de seu governo, como havia feito no seminário pouco antes. “Como se fala em improbidade e corrupção num governo que ganhainvestment grade, que é premiado a toda hora na gestão das finanças?”, indagou. Interrompi-o dizendo que seu problema era o voo do Juquinha e o guardanapo na cabeça. “Eu não apareço em foto nenhuma de guardanapo. Taí, ó. Essa é uma das tentativas de estigmatizar”, disse.

Quando as manifestações tomaram corpo nas ruas, Cabral passou a rever medidas impopulares, como a demolição de um parque aquático e uma escola, que desapareceriam com as obras da Copa e da Olimpíada. Devolveu dinheiro de diárias de viagens privadas e derrubou uma resolução que proibia bailes funk nasfavelas pacificadas. Também sancionou uma lei que vetava mascarados em protestos de rua. No meio da confusão, uma reportagem da Veja mostrou que helicópteros do governo eram usados para levar o governador, sua mulher, seus filhos, babás e até o cachorro da família, o Juquinha, para Mangaratiba. Cabral respondeu às críticas dizendo não estar “fazendo nenhuma estripulia”. Dias depois, pela segunda ocasião, valeu-se de um código de ética. Dessa vez, decidiu disciplinar o uso de aeronaves no serviço público.

Durante nosso passeio pelos jardins do Guanabara, ele argumentou que um governante pode e deve usar helicóptero por questões de segurança. “Ainda mais nós que combatemos tanto a criminalidade”, disse. Passarinhos piavam forte, ele olhou para o céu como se os procurassee emendou: “E o Juquinha, pelo amor de Deus, é um cachorrinho desse tamanhinho, e é do meu filho”, disse afinando a voz e juntando as duas mãos espalmadas no ar. “Sempre foi voo de família, meus filhos junto. Nunca foi só babá com cachorro. É segurança da minha família”, emendou. Quando citei que até um cabeleireiro havia declarado ter voado para atender a família em Mangaratiba, ele cerrou as sobrancelhas e me olhou como se eu estivesse falando javanês. “Ah, isso foi uma vez que ele pegou carona com alguém. Comigo, sei lá, o que é isso! Pelo amor de Deus, não teve isso!”

Um funcionário o parou para falar mal do secretário de Educação. Quando ele se afastou, eu quis saber sobre as diárias recebidas em viagens particulares, pelas quais ele recentemente reembolsou o erário. “Isso foi um erro burocrático. Houve dois ou três casos. A gente explica, mas o repórter vai lá e põe. Eu vou responder? Eu vou brigar com repórter? Eu sou jornalista, pô!” Ele caminhava lentamente e tinha um tom de voz firme, de quem não duvida por um segundo do que está dizendo. “Tem essa estigmatização, isso reverbera em nichos... Tem artista que não gosta de mim. Eu sou admirador do Caetano Veloso, mas ele escreve contra minha administração. Vou desgostar dele, que compõe aquelas músicas extraordinárias? Mais uma vez, é o que eu digo: to-le-rân-cia.” Diante de uma frondosa árvore que nos dava uma sombra refrescante, ele arriscou a hipótese de que talvez tivesse se importado mais com gestão do que com política. “É verdade, eu curto gestão.” Perguntei o que ele diria a quem aposta que ele está morto e Pezão inviabilizado. “Nada!” Insisti. “Digo que eleição e mineração só depois da apuração.”

Assim que as fotos e os vídeos de Cabral, Cavendish e amigos no exterior vieram a público, passou-se a especular sobre quem os teria vazado. Correu na cidade a versão de que teria sido a sogra de Cavendish, que teve duas filhas e dois netos mortos no acidente. Ou que a própria família Magalhães Lins teria viabilizado a divulgação. “Não tem nada de sogra do Cavendish”, disse o deputado Anthony Garotinho, potencial candidato ao governo do Rio, em uma noite de agosto, no seu gabinete na Câmara Federal, em Brasília.

De acordo com Garotinho, as fotos foram copiadas do computador de Jordana Kfuri, mulher de Cavendish, por um amigo dela. “Por coincidência, esse sujeito estudava na mesma faculdade de um funcionário do meu programa de rádio, na Manchete”, contou. O rapaz, que por dever de ofício tinha acesso aos arquivos, se dizia “indignado” com o tratamento dado aos parentes das vítimas e responsabilizava Cabral e Cavendish pelo acidente. “Aí, ele deu o arquivo para o meu funcionário, que me trouxe o pen drive. Quando eu abri as fotos, eu não acreditei”, comentou.

A primeira leva foi divulgada no blog do deputado no auge da CPI do Cachoeira, que investigava as ligações da Delta com o contraventor Carlinhos Cachoeira. De acordo com a Comissão, Cavendish era suspeito de utilizar sua construtora para repassar dinheiro, por meio de laranjas, a pessoas ligadas ao esquema do bicheiro. Em troca, ganhava prioridade nas obras estaduais. “Ali eu vazei para pressionar o Congresso para convocar o Cabral para a CPI, mas a blindagem do governo foi mais forte”, comentou Garotinho. Foram convocados os governadores Agnelo Queiroz, do PT do Distrito Federal, e o tucano Marconi Perillo, de Goiás. Fora a amizade com Cavendish e os gordos contratos da empresa com o governo, Cabral não havia sido citado em nenhum grampo da investigação. Mas o deputado Cândido Vaccarezza, do PT, foi flagrado mandando uma mensagem de texto tranquilizando Cabral. “Você é nosso e nós somos teu”, escreveu.

“São 300 fotos, nós vazamos cinquenta. Tem muita ainda, tem para todos os gostos e públicos”, continuou Garotinho com a voz empostada de locutor de rádio. Eu quis saber se ele havia feito muitas cópias do material. “Eu ando com isso no meu bolso, minha querida. Não está em cofre, não tem cópia, eu não confio em ninguém”, disse, afastando o corpo da mesa, deslizando a cadeira de rodinhas para trás. Ele se abaixou e tirou um pen drive preto da pasta de mão, que estava no chão. “Tá tudo aqui, ó. Tem foto com empreiteiros, com fornecedores do governo, gente que não deveria estar junto, entende? São várias viagens.” Quando pedi para que me mostrasse, ele deu uma risada sarcástica. “Todo mundo vai ver tudo. Mas no momento certo”, afirmou, colocando o dispositivo no bolso da camisa.

Garotinho comentou estar esquadrinhando os contratos da banca de advocacia da mulher do governador. Ela é sócia majoritária do escritório Coelho & Ancelmo, que tem como clientes o Metrô do Rio, a Supervia e o Grupo Facility, com contratos de mais de 1,5 bilhão de reais com o governo estadual. Antes de Cabral assumir o cargo, apenas 2% do faturamento do escritório tinha origem em concessionárias e prestadoras de serviço para o estado. Atualmente, são 60%.

Às dez da noite Garotinho continuava elétrico. “Vamos ver os vídeos! Faz tempo que não vejo!”, sugeriu. Abriu o iPad e achou no YouTube as gravações que haviam vazado. “Ai, esse é ótimo!”, comentou. Na tela, via-se o grupo ao redor de uma mesa de um restaurante de hotel sob o olhar aturdido de um garçom, que segurava um bolo. “Olha, agora eles vão cantar ‘Com quem será’, olha o que o Cabral vai fazer!”, disse com a animação de uma criança. Os convivas entoaram a música e Cabral levantou o braço como que para chamar a atenção para si na filmagem. “Vai depender, vai depender...”, ouvia-se. Teatralmente, Garotinho se levantou da cadeira e passou a imitar os gestos e cantar em uníssono com o governador, que encarava a câmera. “Se o Serginho vai querer!”, repetiu o deputado antes de explodir em uma gaitada. “Depois, eu que sou provinciano, eu que sou da turma do chuvisco”, disse, ainda, em gargalhada. “Esse Sérgio Cabral é o maior mico que o Rio de Janeiro já teve.”

Nos jardins do palácio, Cabral continuava a caminhada peripatética. Falou-se sobre o sucesso do escritório de advocacia de sua mulher. “Olha que interessante, eu estava refletindo outro dia: normalmente os políticos são agredidos por botar a mulher na assistência social. Há vinte anos, minha mulher tem esse escritório que...” “Cresceu horrores no seu governo”, completei. Com um tom de voz sério, ele retrucou que jamais pediu favores em nome dela: “Nunca me meti nos assuntos do trabalho dela e não vai ser agora. É até covardia contra o mérito dela e dos sócios.”

Comentei que havia quem apostasse que, se o helicóptero não tivesse caído na Bahia, ele estaria firme no jogo sucessório. Cabral lembrou que, antes dos protestos, ou seja, bem depois do helicóptero e do guardanapo, a aprovação a seu governo era de 45%. “O Eduardo Paes foi reeleito com 64% dos votos caminhando do meu lado. Nas eleições de 2012, estive em vários palanques.” De novo, minimizou o caso: “Nunca escondi a minha amizade com o Cavendish, que é anterior ao governo e que não tem nada a ver com o problema que ele teve no Centro-Oeste”, defendeu-se.

Uma análise da revista inglesa The Economist atribuía a queda vertiginosa na popularidade de Cabral a uma percepção na fragilidade da política de enfrentamento da violência. O desaparecimento do pedreiro Amarildo na Rocinha e a morte de nove pessoas no Complexo da Maré, assassinadas por policiais, teriam contribuído para isso.

O celular de Cabral tocou. Era Dorita, chefe de gabinete, dizendo que estava atrasado para a reunião. Foi quando ele se deu conta de que segurava um livro de fotos do Palácio Guanabara desde o início do passeio, como uma bolsa ou uma pasta. “Nem me toquei”, disse, oferecendo-me o presente. Ele se despediu com dois beijinhos, mas antes concluiu o raciocínio. “Nem todas as críticas foram equivocadas, é preciso refletir sobre elas, mas as pessoas vão perceber que o governo briga para descobrir onde está o Amarildo. Vão ouvir a empregada doméstica que mora na Cidade de Deus contar que a vida dela melhorou muito”, afirmou. “É um processo, há que se entender isso. Mas uma coisa que eu não sou é soberbo. Isso não. Não tem cara mais humilde do que eu. Quem me conhece sabe”, disse.

Era noite quando a primeira das oito barracas foi desmontada. No começo de setembro, depois de 36 dias instalados no Leblon, os manifestantes do Ocupa Cabral levantaram acampamento. À imprensa, disseram que iriam se preparar para os atos de 7 de setembro. “Começou a encher de mascarados no Ocupa, a coisa foi ficando com um tom diferente do que era no começo. Depois veio a lei que proibia usar máscara. Se os mascarados ficassem lá, a ordem era tirar todo mundo do acampamento... Então, eles saíram antes”, disse-me dias depois, por telefone, André Cintra, irmão de Bruno Ruivo, que – como todos os outros manifestantes com que conversei – estava incomunicável. “O meu irmão diz que eles só estão de férias, não estão desmobilizados. Que isso está longe de terminar, mas o estrago no Cabral já está feito”, completou.

Dias depois, no escritório de Jorge Picciani na Barra da Tijuca, um grupo da base governista comemorava a desocupação na porta de Cabral. Um deputado estadual apostava numa possível bonança, falava mal dos candidatos à sucessão e se mostrava confiante na eleição de Pezão. “Nós temos a máquina, temos gente, dinheiro e sabemos fazer campanha”, comentou, pedindo anonimato porque almejava um cargo público. De cabeça, passou a cantar os números de uma pesquisa do partido, que colocava na liderança da disputa o ministro da Pesca, Marcelo Crivella, do Partido Republicano Brasileiro, seguido por Lindbergh Farias, com 17%, Garotinho, com 13%, e Pezão com 10% das intenções de votos.

Segundo ele, a ira contra Cabral não havia atingido o vice. Pezão, ele disse, tinha “o passado limpo”. “Ele não tem calo, tem calinho, não pega nada”, comentou. O “calinho” era a desapropriação da casa de uma parente – feita quando Pezão foi governador interino –, vendida ao estado em regime de urgência por um valor muito superior ao do mercado.

O plano era Cabral deixar o cargo em dezembro para que Pezão se beneficiasse o quanto antes das inaugurações previstas para o ano que vem. Segundo Picciani, o governador melhoraria nas pesquisas e sua saída antecipada não teria ar de fuga. “O Pezão tira os cinco principais secretários, põe gente dele, cria uma marca própria. Vai continuar com o Beltrame [secretário de Segurança Pública], que é um sucesso”, disse. A ideia também era acomodar Cabral em um ministério, já que uma candidatura ao Senado poderia ser arriscada. As negociações estavam adiantadas com o Palácio do Planalto. De Brasília, veio a sugestão de abrigá-lo na pasta do Turismo. Ele não gostou. Achou que se tratava de uma piada.

Fonte: Rio 247

Nenhum comentário:

Postar um comentário