terça-feira, 26 de março de 2013

Sócios da Casa Imperial devem passar o ponto

Aos 86 anos, confeitaria é testemunha das transformações do Rio e preserva administração familiar

Sem pão. A Casa Imperial, na esquina das ruas Voluntários da Pátria e Real Grandeza
Foto: Guillermo Giansanti / O Globo
Sem pão. A Casa Imperial, na esquina das ruas Voluntários da Pátria e Real GrandezaGuillermo Giansanti / O Globo
RIO - Há um forno a poucos centímetros da calçada minúscula, no coração de Botafogo. O calor espalha o inconfundível aroma do frango de padaria, enquanto pedestres e distribuidores de panfleto se espremem para tentar vencer a movimentada esquina entre as ruas Voluntários da Pátria e Real Grandeza. Mas basta o pulo de um degrau para sair do formigueiro e entrar em outro, o tentador mundo oferecido por uma senhora confeitaria. Aos 86 anos, a Casa Imperial testemunhou as grandes transformações do bairro e da cidade ao longo do século XX para vender seus quitutes. Tudo indica, porém, que só por um acaso divino estará aberta a tempo da chegada do Papa Francisco, em julho. Herdeiros já decidiram que não vão continuar com o negócio, receberam propostas — de marcas grandes do varejo — e podem selar um acordo a qualquer momento.
Fregueses batem ponto por lá, assim como o imponente relógio de madeira dos anos 1920 que exibe os nomes dos fundadores: “Albino, Costa e Cia.”. O imóvel pertence, desde meados dos anos 1980, a três sócios, dois deles de origem portuguesa e que, apesar de terem passado da casa dos 70 anos, dão expediente, mesmo cansados. Não há crise financeira de aluguel, tão comum nos dias de hoje, apenas o consenso de que a história está perto do fim. É melhor passar o ponto e alugar (bem) o imóvel. Gerente e filho do sócio majoritário, Antonio Carlos Calçada trabalha na Imperial há 27 anos e divide hoje seu tempo com outros negócios. Fechada a casa, ele sonha ter sucesso na recém-iniciada carreira de empresário de jogadores de futebol.
Enquanto boatos já apavoram frequentadores antigos que não abrem mão de brioches, minipães de queijo e sonhos que não saíam da cabeça de Tim Maia — em 1969, o cantor morou ali perto, no número 171 da Real Grandeza —, sobrevivem saborosos resquícios da história da cidade e de como o comércio era administrado no passado. Da época em que a confeitaria era frequentada, nos anos 1930, pelo integralista Plínio Salgado aos tempos dos clientes famosos mais “novos”, como Paulinho da Viola, Emílio Santiago, Baby do Brasil e Lírio Mário da Costa, o Costinha.
— Tim Maia comeu muito sonho na Imperial, mas uma vez desacatou o dono (antigo, antes da venda), e o cara o jurou. Disse que, se ele aparecesse lá, aconteceria uma guerra não declarada. O gordo era muito folgado e queria comer além da conta. Devorava 12 sonhos num só dia. Teve que parar de frequentar. O detalhe é que eu segurava a onda porque ele estava com a verba baixa na época — lembra o cantor e compositor Fabio Stella, que cedeu o sofá de seu apartamento na Real Grandeza, a poucos metros da Imperial, para o amigo que ainda não era famoso.
Aberta religiosamente 365 dias por ano, das 5h às 22h, a confeitaria mantém aparência e estrutura antigas, na fronteira entre o tradicional e o ultrapassado. Diariamente, às 3h30m, o português e sócio majoritário, Antonio Calçada, de 71 anos, chega à Imperial. O filho e gerente diz que o horário certo é às 5h, mas “ele perde o sono”. Com óculos na ponta do nariz e molho de chaves pendurado por um cordão no bolso de trás, prefere não conceder entrevista. Gosta mesmo, agora, é de ficar na saída do caixa, na simples tarefa de empacotar as compras dos fregueses, mas sempre atento ao movimento. Ele sabe das coisas — trabalha no comércio carioca desde os 19 anos, quando chegou da região portuguesa de Viana do Castelo. Foi sócio da tradicional Rio Lisboa, no Leblon.
— Me responda rápido: qual é o estabelecimento em que você vê o dono hoje em dia? Só padaria. E não são todas! Com certeza meu pai vai sofrer muito. Será uma perda muito grande para mim, para ele, para os funcionários, para Botafogo. Mas todos os sócios estão dispostos a passar o ponto, se a proposta for interessante — diz o gerente Antonio Carlos. — Isso aqui está mais para família. Tenho funcionário que não trabalharia em lugar algum do Rio, que é fraco. Mas ficamos com pena e não mandamos embora. Às vezes o banco está fechado e trocamos até cheque de cliente de confiança. Penduramos conta também.
Dois dos 52 funcionários da Imperial têm ali sua própria casa e não pagam aluguel. Decidiram, com autorização da chefia, viver em quartinhos nos fundos do espaçoso imóvel, algo impensável para o novo comércio do bairro, cada vez mais inserido no renovado circuito gastronômico da cidade. Mas dos anos 1920 a meados do século passado, a chamada “alta sociedade” tinha, ali, o seu abrigo.
Um exemplar de 1951 do jornal “A Cruz”, editado pela vizinha Igreja da Matriz, traz informações preciosas sobre a história da Imperial. O achado é do jornalista Cláudio Henrique, autor do livro “Botafogo — O patinho feio da cidade” (Relume Dumará, 2004), que entrevistou o português Jayme Santos, conhecido como Seu Santos, ex-sócio que trabalhou na padaria até os 97 anos, quando morreu, em 2009. Ele participou da primeira composição societária da casa inaugurada, segundo o livro, em 17 de dezembro de 1926, cinco anos antes do Cristo Redentor. O jornalzinho, guardado com cuidado por Seu Santos, saudava as bodas de prata da padaria. “Seu aparecimento foi um marco decisivo no progresso. Até então, não havia em Botafogo um ponto ‘chic’, uma confeitaria onde se pudesse reunir a alta sociedade. Em consequência, faltava a este recanto do Rio, que desaparecia diante do crescimento de Copacabana, vida social. As famílias viviam recolhidas”, explicava a reportagem reproduzida no livro.
— Era confeitaria tipo a Colombo, tinha salão de chá, e, quando o Rio era capital, apareciam deputados — recorda-se Cipriano dos Santos, de 75 anos, um dos sócios que, a partir dos anos 1980, implantaram a venda de itens mais comuns em padarias, como o frango assado.
Aliado a Calçada, Cipriano comprou a casa dos primeiros proprietários, que tinham tradição na praça: Albino Luiz da Silva, o nome escrito no relógio, foi sócio da Colombo. A Imperial dividiu durante muito tempo atenções com a Confeitaria Bragança, que funcionava do outro lado da Voluntários da Pátria, onde hoje há uma farmácia, e que foi, por um período, propriedade do intrépido Albino. Era famosa por servir bombas de chantili, camarões empanados e palmiers gigantes.
A última reforma da Imperial foi feita há 12 anos, e a casa ficou sem estilo arquitetônico claro. Além da grande variedade de pães, doces, tortas e biscoitos, todos de fabricação própria, são vendidos itens variados de mercearia num minimercado. No balcão, fregueses podem almoçar no bufê, mas quem serve é o atendente. O cliente tenta enxergar os pratos do dia através do vidro embaçado, o funcionário serve no prato e pesa. As opções são caseiras, e os frequentadores sentam-se lado a lado para comer. Mas nem sempre com calma.
Por ficar numa das esquinas mais movimentadas do bairro, a Imperial também tem acidentes em sua história. Certa vez, em janeiro de 1989, um ônibus da linha 154 (Estrada de Ferro-Copacabana) entrou na padaria e quebrou uma vitrine inteira, conta o gerente. Foi construída uma proteção de concreto com trilhos velhos de trem no recheio, bem na esquina, para proteger os pedestres e a casa.
Não serão apenas os fregueses “pessoas físicas” que sentirão a falta da Imperial. A confeitaria tem uma relação direta com o funcionamento do bairro. Num tempo em que muitos moradores preferem pães franceses fabricados por supermercados, diariamente são vendidos pelo menos 650 pães, embalados um a um, para a Casa de Saúde São José. Bares vizinhos também usam os pães da octogenária casa em seus sanduíches.
Até hoje, o gerente Antonio Carlos usa o mesmo método para fazer o controle de mercadorias, ensinado por Seu Santos. Até há um computador em seu escritório, na sobreloja, mas não é usado. Todas as compras são organizadas, a caneta, num livro pautado. Nota fiscal por nota fiscal. O herdeiro diz que tudo é “feito na escrita”.
Muitos funcionários têm cabelos brancos e já estão aposentados, mas continuam lá.
— Os fregueses querem que o frango seja cortado por mim. Estou aqui há 30 anos, é uma vida. Vou sentir falta. Uma vez tive problema de saúde e me deram licença de três meses. Voltei em 45 dias, é o costume de trabalhar — explica um dos funcionários mais antigos da casa e titular da tesoura que corta o frango assado, Orlandino Molina, de 69 anos.
Fregueses também têm relações de décadas:
— Não pode deixar fechar! Não diga isso. Trabalhava em Furnas (que fica perto, na Real Grandeza) nos anos 1970 e 1980 e não tínhamos muitas opções. Vinha sempre à Imperial. Essa padaria faz parte da história de Botafogo, era linda (antes da reforma) — lembra a pedagoga Rita Pitta, ex-funcionária da estatal de energia.
Embaixo do antigo relógio, uma placa, também dos anos 1920, chama a atenção dos fregueses que aproveitam o que podem ser as últimas fornadas da Imperial. Está escrito, há mais de 80 anos, para todos lerem: “A quem serve, prudência. A quem é servido, paciência”.
Mas, e para quem terá saudade?

Fonte: O Globo

Nenhum comentário:

Postar um comentário