Uma seleção desacreditada revela o talento do brasileiro,
supera os temidos europeus, faz a torcida sorrir e conquista nossa
primeira Copa do Mundo. O pesadelo de 1950 terminou
![]() |
O escrete de ouro: o técnico Feola, Djalma Santos, Zito, Bellini, Nilton Santos, Orlando e Gilmar; Garrincha, Didi, Pelé, Vavá e Zagallo |
Foram 2.905 dias de cabeça baixa, ombros curvados e rabo entre as pernas. Durante 415 semanas, o jogador de futebol do Brasil zanzou pelos gramados estrangeiros sem saber ao certo do que era capaz. Temia descobrir sua própria identidade, pois acreditava que o drama de 1950 revelara sua fraqueza, sua covardia, sua inferioridade – o chamado "complexo de vira-latas", conforme a célebre definição do cronista Nelson Rodrigues na revista Manchete Esportiva. Na tarde do último dia 29, contudo, o escrete brasileiro mostrou pertencer à mais nobre das linhagens: a dos campeões do mundo. Noventa e cinco meses depois da mais doída tragédia da história esportiva do país, a seleção nacional enfim exorcizou os fantasmas que tiravam o sono de seus craques e assombravam seus sofridos torcedores desde a tragédia do Maracanã. Ainda não somos os maiorais da bola, é fato – os gigantes Uruguai e Itália, por exemplo, já conquistaram duas Copas cada um. Neste alegre junho de 1958, porém, ninguém mais duvida: o brasileiro é o melhor jogador de futebol do planeta.
A sensacional vitória na finalíssima contra a Suécia, no domingo – 5 a 2, placar jamais antes visto numa decisão de Copa do Mundo – lavou a alma dos brasileiros e tirou um monstruoso peso das costas dos ídolos da seleção. Afinal, todos ainda carregavam as duras lembranças da inacreditável derrota para os uruguaios, oito anos antes, no Mundial realizado no Brasil. Os jogadores, cada um a seu modo, estavam marcados pelo desastre. O lateral Nilton Santos, único remanescente do time de 1950, viu tudo de perto, do banco de reservas do Maracanã. O atleta mais velho da equipe (33 anos) chegou à Suécia sabendo que era sua última chance de superar o trauma. Se voltasse derrotado, possivelmente não retornaria à seleção. O ponta Zagalo também presenciara o Maracanazo no estádio – naquele tempo, era o praça Mário Jorge, de 18 anos, escalado pela Polícia do Exército para tomar conta da euforia dos 200.000 torcedores espremidos nas arquibancadas quando o Brasil ganhasse a taça. Zagalo não teve trabalho algum. A multidão esvaziou o gigante de concreto em meio a um silêncio sepulcral.
![]() |
O começo da arrancada: uma vitória suada contra a Áustria, na partida de estréia |
No embarque para a Suécia, contudo, até mesmo o desligado e zombeteiro Garrincha notou que as memórias de 1950 (somadas à decepção do Mundial de 1954, na Suíça) seriam um obstáculo a mais no caminho do escrete. A equipe comandada pelo técnico Vicente Feola ainda não arrancava suspiros da torcida: passou apertado pelas Eliminatórias (contra o Peru, empate de 1 a 1 em Lima e vitória magra de 1 a 0 no Rio de Janeiro) e decepcionou no Sul-Americano de 1957 (levou duas sapatadas, de uruguaios e argentinos). Ainda assim, havia fartura de talento no elenco brasileiro, que reunia a categoria de um Didi, a experiência de um Nilton Santos, a segurança de um Bellini – além, é claro, do toque mágico dos novatos Garrincha e Pelé. Não adiantava: para cronistas e torcedores, a seleção embarcaria (em 25 de maio, num DC-7 da Panair), só para fazer turismo na Escandinávia. A crítica mais comum era de que o jogador brasileiro tinha espírito perdedor – não tinha fibra, era exageradamente humilde, se intimidava de forma vexaminosa diante de rivais estrangeiros. E quando tentava exibir alguma coragem, perdia a cabeça, se esquecia da bola e saía distribuindo caneladas e pontapés nos adversários (como na eliminação contra a Hungria de Puskas, na última Copa).
![]() |
Quase lá: lance da final contra a Suécia |
Pois foi justamente na partida contra a URSS, a terceira da seleção no Mundial, que o Brasil apresentou seu novo futebol ao planeta. Depois de uma vitória suada contra a competente seleção austríaca e de um empate sem gols contra os fortíssimos ingleses, o escrete nacional foi a campo com uma formação diferente: Zito, Pelé e Garrincha entraram nos lugares de Dino, Mazzola e Joel. O técnico Feola encontrara uma fórmula miraculosa. Junto do cerebral Didi, do astuto Zagalo e do vigoroso Vavá, os infernais Pelé e Garrincha formavam um ataque irresistível. E os soviéticos foram as primeiras vítimas. Os três minutos iniciais de jogo já entraram para a história do futebol. Com os russos pegos de calças curtas, o Brasil lançou um bombardeio sem precedentes contra a meta defendida pelo arqueiro Lev Yashin, o "aranha-negra". Aos 40 segundos, Garrincha já acertava a trave, depois de entortar três defensores soviéticos. Antes do primeiro minuto, Pelé já fuzilava o poste outra vez. Os suecos davam gargalhadas com os dribles dos brasileiros. O primeiro gol, de Vavá, aos 3 minutos, foi uma espécie de golpe de misericórdia – sufocados pela avalanche ofensiva dos rivais, os soviéticos pediam água. O Brasil marcaria só mais um gol, novamente com Vavá, aos 31 minutos da segunda etapa. Mas o placar não contava a história toda: os russos saíram de campo desorientados. Garrincha driblou os defensores de todas as maneiras imagináveis. O menino Pelé fez gato e sapato dos enviados do Kremlin. Só o acrobático Yashin evitou uma goleada antológica.
![]() |
O menino decidiu tudo: Pelé anota um tento na decisão contra os donos da casa |
A resposta seria conhecida no duelo contra a França, dona de um arsenal poderosíssimo – era o melhor ataque do torneio (fantásticos quinze gols em quatro jogos) e tinha seu maior artilheiro, Just Fontaine (oito tentos, dois a mais que toda a seleção do Brasil). Feola e sua comissão também estavam de olho em outro adversário, que batia à porta da concentração depois de um sumiço de oito anos: o indesejável clima de já ganhou, que ameaçava roubar a atenção dos craques e sabotar as chances brasileiras justamente na fase mais aguda da Copa. Mas o escrete não vacilou: repetiu o início arrasador das partidas anteriores e marcou seu primeiro gol no segundo minuto de jogo. Aos oito, o implacável Fontaine igualou o placar. A seleção balançou, é verdade - passou os quinze minutos seguintes perdida no gramado, com a França apertando o nó. Empurrada ao ataque por Garrincha, a equipe logo acalmou os nervos, reencontrou seu jogo e saltou à frente, aos 39 minutos, numa "folha-seca" de Didi. No segundo tempo, Pelé desequilibrou a parada e anotou três tentos. Os suecos aplaudiam e riam. Para os anfitriões e para o resto do mundo, o Brasil já era o melhor da Copa. Faltava a final, justamente contra os suecos.
![]() |
Carnaval junino: festa no centro do Rio |
Esse Brasil, entretanto, era outro. As feridas do passado estavam cicatrizadas, e nenhuma assombração perturbaria a festa. Didi apanhou a bola, ergueu a cabeça e carregou o esférico com serenidade de monge até o círculo central. Quatro minutos depois, o Brasil empatava, com Vavá. A virada veio aos 32, com outro tento do inspirado avante. A torcida local trocou de lado: sabia que a derrota era inevitável e que estavam diante dos melhores. O restante do embate foi um espetáculo brasileiro, com gols de Pelé, Zagallo e outro de Pelé, no último lance da partida. Depois de marcar de cabeça, o menino caiu desmaiado e o árbitro Maurice Guigue apitou o final de jogo. Quando recobrou os sentidos, Pelé era campeão do mundo, assim como seus 63 milhões de compatriotas. O país explodiu em lágrimas – desta vez, de alegria. Enquanto centenas de milhares de pessoas saíam às ruas num carnaval improvisado, o rei da Suécia, Gustavo VI, entregava a taça Jules Rimet a Bellini, na tribuna de honra do estádio Rasunda. O capitão segurou o troféu de ouro com as duas mãos e o ergueu acima da cabeça, em direção ao céu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário