"Por trás dele, um mar de dúvidas e perplexidades. Por que beneficiar proprietários em detrimento de moradores pobres? Não seria por um desejo não revelado de especulação imobiliária, por acertos espúrios entre alguns "anéis burocráticos"? Por que nada se fez pelo Pinheirinho no correr dos últimos anos, tempo em que os gestores públicos assistiram impassíveis à consolidação do bairro?", pergunta Marco Aurélio Nogueira, professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 28-01-2012.
Segundo ele, "será preciso esforço, ideias e tempo para que amadureçam soluções democráticas consistentes para os problemas que estão a emergir da revolução atual, que está revirando os fundamentos do viver coletivo, e desta crise orgânica que está fazendo com que o capitalismo aprofunde suas imperfeições, desorganize os sistemas de produção e distribuição, as formas de vida, as identidades e os modelos políticos, complicando e problematizando as capacidades coletivas de reação e emancipação".
Eis o artigo.
O que era para ser festa pelos 458 anos de São Paulo virou vergonha, preocupação e convite à reflexão. O estopim foi aceso no domingo, 22, ao raiar da madrugada, quando a Polícia Militar (PM) paulista removeu à força os moradores de um terreno vazio do município de São José dos Campos, o Pinheirinho, pertencente à massa falida do investidor Naji Nahas. Cerca de 6 mil pessoas viviam na área de 1,3 milhão de metros quadrados. A operação tinha o respaldo de uma decisão judicial estadual, contestada por setores da Justiça Federal.
Decisão judicial emanada, a PM foi a campo. O ambiente era de conflito, pois os ocupantes se organizaram para resistir. E o que era para ser mero ato jurídico se converteu em batalha campal. Os militares expulsaram as pessoas de seus barracos, que foram sucessivamente destruídos por tratores. O confronto foi inevitável. Carros queimados, pessoas feridas, dezenas de presos, choques e pancadaria, cenas que se repetiriam nos dias seguintes. Tudo em doses desproporcionais ao que se tinha de fato no Pinheirinho: 1.500 famílias convencidas de que seria possível ter ali um canto para viver. Não havia exércitos inimigos nem "classes perigosas", mas uma guerra terminou por eclodir.
A ocupação do Pinheirinho ocorreu em 2004. O acampamento proliferou. Converteu o terreno num bairro, com comércio e igrejas. Deu perspectivas de vida e moradia a milhares de pessoas. Ao longo do tempo suas lideranças procuraram negociar a desapropriação pública do terreno e a atenção dos poderes municipais. Talvez não tenham tido a habilidade necessária, talvez não tenham sabido buscar os apoios e os meios necessários, certamente encontraram resistência, protelação e má vontade. Nos últimos tempos era clara a vontade de se ter uma saída negociada. A solução, porém, foi sendo postergada pelo poder municipal, desprovido de inteligência e de política urbana. Município, Estado e União assistiram ao crescimento do bairro e nada fizeram para gerenciar o que ali se estava gestando. Tiveram oito anos para isso. Aí, de repente, na calada da noite, decide-se remover à força os ocupantes. Insensatez.
É fácil criticar a PM, mas a ação foi estatal, autorizada. Teria agido a PM à revelia do governador ou a principal autoridade paulista não teve como escapar do fato de que "decisão da Justiça não se discute, cumpre-se"? Tão correta quanto essa máxima é a consideração do modo como uma decisão deve ser cumprida, a avaliação de suas consequências. Não era evidente que a remoção levaria a choques e confrontos? Que milhares de pessoas seriam prejudicadas? Sabia-se disso tudo porque tudo era de conhecimento público. Processos de desocupação à força ferem direitos, produzem vítimas e criam muito mais problemas que soluções.
Apesar disso, não houve uma voz que ponderasse e suspendesse a operação. Que freasse o massacre que se anunciava. A falta de flexibilidade horroriza porque, no dia anterior, o Tribunal Regional Federal interrompera a reintegração de posse e também porque, uma semana atrás, estava bem avançado um acordo entre as partes envolvidas. Faltou política com P maiúsculo. Não apareceu ninguém - partidos políticos, lideranças democráticas, poderes públicos - para facilitar o encontro de uma solução negociada. Somente as lideranças do Pinheirinho se mobilizaram, com a ajuda efêmera de alguns ativistas. Deu no que deu.
A repercussão foi imediata. As redes ferveram. A mídia repercutiu os acontecimentos. A Ordem dos Advogados do Brasil classificou como ilegal a reintegração de posse, realizada apesar de ordem da Justiça Federal mandando suspender a ação. Exacerbou-se o conflito de competências federativas. O governador de São Paulo prometeu verificar se houve abusos na operação. Da sociedade civil e de Brasília choveram críticas a ele e ao PSDB. Houve manifestações. A questão politizou-se. O que era para ser ato pontual se converteu em tema nacional, eleitoral, alimentado por uma tragédia social.
Por trás dele, um mar de dúvidas e perplexidades. Por que beneficiar proprietários em detrimento de moradores pobres? Não seria por um desejo não revelado de especulação imobiliária, por acertos espúrios entre alguns "anéis burocráticos"? Por que nada se fez pelo Pinheirinho no correr dos últimos anos, tempo em que os gestores públicos assistiram impassíveis à consolidação do bairro? Uma nódoa manchou os governos estadual e municipal, e o PSDB por implicação. Será difícil apagá-la. Ela respingou no sistema político como um todo, chegou a Brasília, ao Ministério das Cidades, e não só a ele. Sempre é fácil apelar para o pacto federativo quando se trata de justificar a ausência de políticas e o abandono dos mais fracos. Também é fácil falar em soluções ex-post facto.
A falta de ação política positiva, capaz de gerar consensos e soluções, ficou evidente no Pinheirinho. Mas está em toda parte. Os ambientes atuais estão congestionados de posições referenciadas por princípios que não se compõem com facilidade: o desejo de justiça, igualdade e liberdade versus a exigência de controle. É uma polarização que só tem feito se agravar. Aparece no modo como se pensa e se pratica a política hoje, na tensão despropositada entre representação e participação. Mostra-se na face autoritária e no particularismo dos governos, sempre prontos a defender os mais fortes.
Será preciso esforço, ideias e tempo para que amadureçam soluções democráticas consistentes para os problemas que estão a emergir da revolução atual, que está revirando os fundamentos do viver coletivo, e desta crise orgânica que está fazendo com que o capitalismo aprofunde suas imperfeições, desorganize os sistemas de produção e distribuição, as formas de vida, as identidades e os modelos políticos, complicando e problematizando as capacidades coletivas de reação e emancipação.
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos
Nenhum comentário:
Postar um comentário