As ofensas na abertura da Copa do Mundo falam mais sobre a vida feudal e aristocrática de nossa elite do que da presidenta
Lula, com sabedoria, disse que esta Copa mostraria ao mundo o País como ele é. E isso já está rolando.
A Copa está mostrando aos turistas a amabilidade e a simpatia de nosso povo. Não há registro relevante de agressões a torcidas estrangeiras. Aliás, ao contrário, o que se vê é uma reação altamente positiva de nossos visitantes ao País, ao menos até agora.
Na quinta-feira, 12, no trem que nos levava aos jogos, as mesmas pessoas que dali a pouco manifestariam ódio tratavam com carinho e acolhimento nossos visitantes. Show de civilização.
De outro lado, houve os xingamentos deselegantes e incivilizados dirigidos à nossa presidenta. Francamente, acho positiva a ocorrência, pois denuncia ao mundo um lado de incivilidade grosseira e deseducada de nossas elites. Seu modo inculto e ignorante de ser e ver o mundo.
O ódio é compreensível. Eu estava presente no jogo, e não havia lá uma só pessoa, entre as que vi, que não fosse da chamada classe media alta.
Sou da classe média alta paulistana, conheço bem essa gente que é minha.
A maioria é gente boa e dedicada ao trabalho e à família, respondem por um tanto significativo do que temos de bom no País em termos de produção econômica nos diversos setores, são os gerentes da economia nacional.
Isso os que trabalham, obviamente. Há uma parte que vive de herança ou proteção da família, falam mal do Bolsa Família dos pobres porque têm a proteção dos seus. Podem viver confortavelmente sem nunca ter sabido de fato o que é o sacrifício do trabalho, aquele tipo de trabalho sem o qual não se come. Não falo, portanto, daquele que se realiza por prazer ou por manutenção da imagem perante a sociedade.
Uma coisa é certa: em geral, passaram a vida sem lavar a própria latrina ou sem ter de ir comprar pão de manhã, salvo talvez nos acampamentos de jovens, em viagens, em tempos de estudo do exterior ou ainda no caso de terem sido criados por algum pai disciplinador, exigente, por amor, com os filhos. Nunca fizeram tarefas domésticas por exigência real de seu modo de vida.
Admiram em abstrato o capitalismo moderno da Europa e dos EUA, mas não conseguem suportar a mínima convivência civilizada com qualquer mudança que se aproxime desta forma mais evoluída de viver, pois todas, sem exceção, representam, em alguma medida, a perda de algum privilégio
No plano econômico, a inclusão social, que teve sua semente no governo Itamar/FHC, com o fim da inflação, e tornou-se marco da gestão Lula e Dilma, representa exatamente essa modernização de nosso capitalismo, uma real aproximação do modo de vida europeu ou norte-americano.
E aí, creio, mora o problema. Vejam como vivem as pessoas da classe média europeia ou norte-americana. Pagam caro para não ter de limpar a própria latrina e, se não comprarem seu pão ou cozinharem a própria comida, não comem. Um capitalismo moderno não aceita bem essa vida feudal e aristocrática de nossa classe média alta urbana.
Modernizar o capitalismo brasileiro significa sacrificar esses privilégios.
No melhor sentido psicanalítico, quando Pedro fala de Paulo, fala mais de Pedro que de Paulo. Os xingamentos falaram mais de nossa elite do que de Dilma. Mostra que sua alegada educação superior, quando muito, se trata de alguma formação técnica ou científica, obtida em geral em escolas de nível inferior. Nada de cultura humanista.
Nossa elite, salvo honrosas exceções, nunca leu um clássico do pensamento. Alias, quase não lê algo que não seja da área técnica ao qual se dedica -- isso, obviamente, os que trabalham.
Falta-lhes elegância e refinamento de pensamento necessários a uma visão generosa da vida e do mundo, a ir além do próprio umbigo. Não adianta cobrar-lhes respeito à faixa presidencial pelo que ela significa num Estado democrático de Direito, pois em verdade não conhecem o que isso significa, não têm saber humanístico suficiente. O xingamento foi o que pareceu: ignorância mesmo.
Dilma mereceu as vaias? Talvez, mas não os xingamentos. É a primeira mulher eleita presidente. E foi eleita pelo povo. Só por isso deveria haver mais contenção na manifestação de descontentamento com seu governo.
Francamente, ainda acho que os xingamentos não se devem a alguma maldade das pessoas que lá estavam. Há que se compreender o modo "default" de visão refinada de mundo a par do medo e ódio, no fundo e até inconscientemente, gerado não por uma suposta indignação moral tão falsa quanto seletiva, mas por conta da perda cada vez maior de privilégios aristocráticos obtidos a custa da ausência de humanidade no papel sempre dado aos subalternos.
Pessoas complexas, dotadas de coisas boas e ruins como qualquer ser humano, exibiram ao mundo uma parte negra do que são. E, talvez, o mundo mais ilustrado tenha visto a grande contradição do País. Não há como modernizar nossa sociedade sem eles. Mas não há também como modernizar nosso sociedade sem civilizá-los.
Esse nosso maior drama como País e Nação. Pois que seja exposto ao mundo. Que a Copa seja a grande vitrine da grandeza e da mediocridade que convivem na alma nacional.
Fonte: Carta Capital Pedro Estevam Serrano
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