Arquivo pessoal
Idealizador dos mais de 2.500 pontos de cultura espalhados pelo País, Célio Turino está com um tom de voz desiludido em meio ao segundo turno da eleição presidencial. A impressão é de que a esperança e energia canalizadas por um projeto foram por água abaixo. Um dos principais articulares da Rede Sustentabilidade, o partido capitaneado por Marina Silva, mas ainda não oficializado, Turino se juntou a nomes importantes dentro do movimento para marcar uma posição contrária ao apoio dela a Aécio Neves (PSDB).
“A candidatura do Aécio não representa aquilo que estava expresso no nosso desejo de construção da Rede e da própria candidatura da Marina”, explicou Turino em entrevista aCartaCapital. “O ponto principal é que a candidatura do Aécio coloca com muita força o primado das finanças, da lógica do dinheiro sobre lógica da vida, que seria o neoliberalismo, e essa lógica, ao nosso ver, é o oposto à ideia da sustentabilidade, porque quando tudo vira dinheiro, acaba o sentido do bem comum. É o que estamos vendo com a água.”
Decepcionado com os passos tomados por Marina, Turino lembrou que ela, ao entrar no PSB, onde a Rede está abrigada, exigiu o rompimento da aliança com o deputado federal Ronaldo Caiado (DEM), proposta aceita por Eduardo Campos, então presidente do partido. “E agora, por ironia e também de uma série de fatores conduzindo essa eleição, vão estar juntos”, observou. Para o ex-chefe da Secretaria da Cidadania Cultural do Ministério da Cultura entre 2004 e 2010, que carrega uma trajetória de 30 anos atuando ao lado de movimentos sociais e culturais, o maior erro de estratégia de Marina se deu em sua própria campanha. “A campanha acabou absorvendo teses que não são às que os apoiadores de Marina sempre estiveram vinculados”, disse, citando como exemplo o debate em torno da autonomia do Banco Central. “A Marina que tinha de ter aparecido na campanha era a da sustentabilidade, da agenda das mudanças climáticas, dos direitos dos povos indígenas, da reforma agrária, que é o que ela defende”.
Leia a entrevista:
CartaCapital – Em manifesto recente, o senhor e outros integrantes da Rede se mostraram contrários a um tomada de posição dentro da polarização PT x PSDB. O manifesto seria o anúncio de um rompimento com a Marina?Célio Turino – Não entendo assim, mas é um posicionamento que vai no sentido oposto, um indicativo muito forte em torno da alternativa do Aécio. E as pessoas que assinaram entenderam que era necessário esse posicionamento, essa distância. Mais ou menos um terço dos membros Elo Nacional da Rede assinaram o manifesto. Em São Paulo houve uma outra consequência que não é exatamente pelo manifesto, mas de 12 pessoas da Executiva do estado de São Paulo, sete deixaram a Rede.
CC – E o que esse número representa na opinião do senhor?CT – Essas pessoas, no meu entender, na função de dirigentes estaduais, entenderam que não caberia a elas aplicar uma posição defendendo um rumo do qual não concordavam e ao mesmo não cabia a elas impor a posição delas ao partido. Então acharam que a atitude mais correta seria o afastamento da função de dirigente.
CC – O senhor rompeu com a Marina apenas em uma postura contrária ao seu apoio a Aécio ou deixou de apoiá-la de modo geral? Qual é a situação do senhor hoje na Rede?CT – Acho que a minha e a de todos... Nenhuma decisão se toma no calor do processo. Era necessário um posicionamento claro daqueles que construíram a Rede e fundaram a Rede, que estiveram na campanha da Marina, de que no nosso entendimento a candidatura do Aécio não representa aquilo que estava expresso no nosso desejo de construção da Rede e da própria candidatura da Marina. Por que não representa? Primeiro, o ponto principal é que a candidatura do Aécio coloca com muita força o primado das finanças, da lógica do dinheiro sobre lógica da vida, que seria o neoliberalismo, e essa ideia tem sido amplamente repudiada no mundo todo, principalmente depois da crise de 2008. E um país com uma economia importante como o Brasil dar uma meia volta nesse sentido teria efeito bastante negativo não só no Brasil, mas para o mundo. Os povos do mundo estão mostrando que em primeiro lugar tem de estar a vida e não as finanças. E essa lógica, ao nosso ver, é o oposto à ideia da sustentabilidade. Porque quando tudo vira dinheiro, acaba o sentido do bem comum. É o que estamos vendo com a água. Metade da cidade de São Paulo está sem água há três dias. Campinas, Itu estão fazendo mobilizações. Campinas é abastecida pela Cantareira. Isso vai criar situação de instabilidade social e até psicológica muito grande, do ponto de vista das pessoas.
A outra é que um outro pilar da Rede é o da cultura da paz, isso é um princípio fundamental. E uma candidatura que está em torno de, praticamente, toda a chamada bancada da bala, defendendo processos de profunda violência contra a população, como se expressa em São Paulo. No estado de São Paulo, a polícia mata anualmente mais gente do que a polícia dos Estados Unidos inteira em números absolutos. E aí, então, isso tudo se resvala em uma política de muito ódio. E essa questão da maioridade penal não é uma simples lei, ela expressa uma covardia da sociedade em não enfrentar as questões fundamentais para termos sociedades mais pacíficas, de convivência mais solidária e mais harmônica. Ela joga no efeito e não na causa do problema, só gerando mais ódio. Isso se resvala em uma campanha de muito ódio que está se gerando no Brasil e que vai trazer uma fissura muito profunda nas relações, até nas eleições, independentemente de quem ganhe. Se a Rede e a Marina persistissem mais na construção de uma terceira via isso seria importante até como reserva moral para o processo de reconciliação no País, que está indo para um grau de agravamento, com amigos perdendo a amizade, conflitos dentro de famílias. Uma ideia que está fomentando muito ódio político, de convivência. A ideia da lei da maioridade penal é um reflexo disso também. Então nós achamos que deveríamos nos posicionar num outro sentido. Porque o aceite do Aécio em relação aos pontos apresentados pela Marina não tem correspondência no conjunto de alianças feitas, de apoios. É muito mais no discurso que na prática.
A Marina, quando entrou no PSB, exigiu rompimento de aliança com o Ronaldo Caiado (DEM), que Eduardo Campos tinha feito. E Campos rompeu essa aliança, a pedido dela. E agora, por ironia e também porque houve uma série de fatores conduzindo essa eleição, vão estar juntos. O Caiado representa algo que há 30 anos vem sendo combatido por muitas das pessoas que vem construindo a Rede: a repressão aos trabalhadores rurais, aos sem-terra, situações de conflito com povos indígenas, muito acirradas agora, a questão do próprio conceito de trabalho escravo. Hoje o moderno conceito de trabalho escravo entende que trabalho degradante e extenuante está dentro disso. Houve toda uma batalha de dez anos para conseguir aprovar a lei do trabalho escravo. E várias das forças que estão em torno da candidatura do Aécio vão no sentido de reverter e atrasar ainda mais isso.
CC – Esse ódio viria como consequência da polarização política?CT – Eu, como historiador, vou escrever um artigo sobre isso mais adiante. Mas tenho observado ódio nas relações políticas e sociais, em um processo de profunda intolerância, que está se resvalando agora na disputa. Às vezes amigos e familiares rompendo relações por causa da disputa eleitoral e na relação da sociedade. E ela se expressa muito bem nessa alternativa, que ao meu ver é bastante covarde, que é em torno da lei da maioridade penal, por que ela joga a responsabilidade de um processo de violência em que não é o responsável, no máximo o reflexo disso. O responsável é exatamente uma polícia ineficiente, relações de corrupção na polícia. São Paulo está vivendo uma epidemia de violência nos últimos tempos. Minas Gerais teve elevação dos índices de violência em 50%. Aliás esse foi um dos principais fatores pelos quais os mineiros não votaram em Aécio. E isso não tem relação com maioridade penal. É uma demagogia, e uma demagogia que exacerba o ódio.
CC – Como o senhor, que acompanhou a Marina nessa construção da Rede, nessa articulação toda, convivendo com ela, vê a Rede e a Marina diante dessa escolha em apoiar o Aécio, que é símbolo desse projeto neoliberal e não necessariamente compromissado com alguns avanços sociais que a sociedade brasileira vem exigindo?CT – Por exemplo, o futuro ministro da Fazenda do Aécio, o Armínio Fraga, já disse que o salário mínimo é elevado. Não há como concordar que o salário mínimo seja elevado. Talvez o almoço e o jantar dele seja. Ele deva gastar mais que um salário mínimo nisso. Mas não é elevado o salário mínimo dos aposentados, dos trabalhadores. De todo modo, prefiro esperar terminar o processo todo para fazer uma avaliação mais precisa a esse respeito. Vamos ver como segue adiante. É melhor aguardar o desfecho. Daqui a dez dias isso estará encerrado. Isso, de certa forma. A depender do resultado, que tende a ser acirrado, o grau de fissura na sociedade será muito grande. 2015 vai ser um ano muito difícil para o Brasil.
CC – Na opinião do senhor, Marina apoiou Aécio para não apoiar a Dilma? Diante dos dois projetos apresentados, o do PT, que ainda fica muito aquém dos exigido pelos movimentos sociais e grupos de direitos humanos, ainda parece carregar mais pontos em comum com as posições de Marina ao longo de sua trajetória de militância?CT – Há alguns fatores: de fato, o governo tem tido uma postura bastante conservadora na agenda ambiental, com povos indígenas. Em alguns casos, até mesmo uma agenda de retrocesso, como reforma agrária, cultura. Até 2010 eu estava no governo como secretário da Cidadania Cultural no Ministério da Cultura, lancei os pontos de cultura, implantamos todos. É inegável, então, o retrocesso nessa área. E também caberia ao governo Dilma repensar essas opções. Como não houve isso, então, dificultou o apoio da Marina. Um outro aspecto é que o PT errou na mão nos ataques. A Marina é uma pessoa progressista, do campo popular, ela tem uma história de vida. Dizem que na campanha foi mais uma decisão do marqueteiro, mas o fato é que houve uma desconstrução moral. E isso, praticamente, implodiu pontes.
Mas a gente tem que pensar no processo histórico, independentemente das forças colocadas. Pelo menos do meu ponto de vista, que tem muitas críticas ao governo Dilma, esse quadro de vitória de uma tese neoliberal para uma economia forte como a do Brasil vai ter um efeito muito ruim para o País e para o mundo. Nos últimos anos fiquei boa parte viajando pela América Latina. E sei do efeito negativo que isso pode ter não só para o Brasil.
CC – A Marina mudou? Como o senhor compararia a Marina que disputou o primeiro turno de 2014 com a Marina que concorria em 2010?CT – Não saberia dizer, mas seguramente a campanha dela não expressou a campanha de 2010. A campanha acabou sendo marcada por erros, atropelos, o acidente do Eduardo, uma série de questões. A campanha acabou absorvendo teses que não são às que os apoiadores de Marina sempre estiveram vinculados. A Marina que tinha de ter aparecido mais na campanha era a da sustentabilidade, da agenda das mudanças climáticas, dos direitos dos povos indígenas, da reforma agrária, que é o que ela defende.Mas acho que ela ficou muito mais na defensiva, na defesa de teses econômicas, que nem tinham muita relação com a história de vida e com a pauta que ela sempre defendeu. Isso, ao meu ver, atrapalhou muito a própria candidatura dela. Eu diria até que foi o principal motivo por ela ter perdido um conjunto de votos. Pode ver os programas de TV. Praticamente nenhum falou dessa agenda da sustentabilidade. Havia pouco tempo de TV, houve muito ataque do PT, e ela tinha de se defender. Mas acho que o eleitorado tinha uma expectativa de ouvir mais essa pauta de avanço.
CC – A pauta econômica, como a decisão de colocar o debate em torno da autonomia do Banco Central na campanha, descaracterizou um pouco aquilo que o eleitorado marineiro estava esperando?CT – Claro que como presidente ela não poderia ser a presidente da pauta ambiental, cultura, indígena, da agricultura familiar. Mas essa pauta acabou ganhando dimensão tamanha que acabou abafando a Marina de 2010. E isso frustrou um conjunto de pessoas. Tanto que pesquisas mostram que naturalmente uma maioria do eleitor da Marina está indo para a candidatura Aécio, mas isso ocorre porque o eleitor progressista foi saindo antes. Antes do primeiro turno, o eleitor progressista que estava com a Marina foi se distanciando. Aí houve uma mudança de perfil no eleitorado.
CC – O senhor apontaria outras "incoerências" nas últimas escolhas ou mesmo no discurso de campanha de Marina?CT – Essa foi a principal. Mesmo em relação àquela errata LGBT foi pura maldade, porque a errata do programa é, inclusive, muito mais avançada que a maioria dos programas dos demais candidatos. Mas em política e história o que fica é a versão, mais do que o fato. E a versão foi negativa. Foi um erro de condução, muito mais que de postura. O problema é que após aquele erro, houve essa agenda econômica muito forte, contraditória com a trajetória dela, e aí foi dando uma sucessão de problemas que deram no resultado que tinha de dar mesmo.
CC – O que é a Rede hoje e qual o futuro dela?CT – Vai depender muito do resultado dessa eleição e do rumo das coisas. A Rede é uma necessidade, um partido em rede, que construa uma outra cultura política, uma necessidade do nosso tempo. Tanto que vários países têm estruturado alternativa assim. Na Itália, o Cinco Estrelas, na Espanha, o Podemos, na Índia, o Partido do Homem Comum. Há vários movimentos que vão na construção de uma nova política. A rede se inseriu nisso, até antecedendo os movimentos de junho que houve no Brasil. Porém, a depender da inflexão e se ela entrar nesse quadro das velhas alianças e acordos, ela pode se frustrar, pode até não conseguir ser essa alternativa. Mas daí entendo que alguma outra alternativa vai nascer, porque se trata de uma necessidade desse tempo.
CC – Se não for a Rede, haverá outra alternativa neste sentido?CT – Seguramente. Há uma demanda por algo diferenciado, há um pensamento progressista muito forte na sociedade brasileira que não se sente contemplado pelos atuais partidos de esquerda. Há uma busca de um ativismo maior, construção de outros mecanismos de democracia direta que envolvem atos revogatórios, inclusive, como suspensão de mandato. Isso tem no mundo inteiro, até nos EUA tem. Aqui a gente está muito atrasado em mecanismos de participação democrática. Então vai ter que construir. Às vezes, quando as pessoas falam de reforma política associam muito só à questão eleitoral, que é importante acabar com abuso do poder econômico nas eleições e uma série de outros mecanismos, mas a reforma política vai além disso, envolve uma série de outros mecanismos, inclusive de consulta mais constante, direta e permanente.
CC – O senhor acredita na possibilidade de Marina entrar no governo Aécio se ele for eleito?CT – Não saberia dizer.
CC – Há quem diga que o senhor vinha sendo cotado para ser ministro da Cultura em um possível governo Marina. A ideia o agrada?CT – Estou sabendo por você. Eu me dediquei, de fato. Quando eu percebi que essa agenda econômica estava um pouco fora do que a gente tinha construído e pensado desde o início da Rede, a minha contribuição na campanha da Marina concentrei naquilo que tenho conhecimento maior. Então, é investir na construção do programa da cultura, nos encontros da cultura. Tivemos 600 pessoas contribuindo com programa de cultura, e nessa área, de fato, a Marina teve um diferencial, de agregar apoio. De fato, investi nisso, mas não tinha nenhuma pretensão específica não. E esse tipo de questão, de ocupar cargo, não foi trazida em nenhum momento.
CC – Muitos membros da Rede insatisfeitos com a situação colocada na mesa recomendam votar nulo. No dia 26 qual opção o senhor fará?CT – Estou avaliando. Eu tenho tido uma postura de muita convicção de que a candidatura do Aécio representa um profundo retrocesso. Nesse momento, no entanto, não consegui fazer uma decisão. Pode ser que perto da urna eu tenha uma postura mais explícita em um outro sentido. A alternativa que mais contemplaria, não a Rede, mas a possibilidade de um Brasil ter um agregador para depois das eleições, seria, sim, a neutralidade. Não é ficar em cima do muro, mas entender pouco o quadro atual.
Fonte: CartaCapital
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