terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Castelo de Areia, a operação das operações

Como a Lava Jato se conecta à Castelo de Areia, investigação da PF engavetada, mas ainda viva no gabinete do ministro Luis Roberto Barros

Olga Vlahou
Paraisópolis
A quebra do sigilo de Alberto Youssef mostra que o Consórcio Sehab, contratado para a reurbanização da Favela Parque Real, em Paraisópolis, realizou vários depósitos na conta de uma de suas empresas de fachada
Após reunir as provas necessárias da existência de um cartel de empreiteiras a atuar na Petrobras, a força-tarefa envolvida nas investigações da Operação Lava Jato pretende agora seguir o caminho do dinheiro desviado nas licitações para, em seguida, mapear os destinatários da propina distribuída em troca do superfaturamento de obras públicas. O primeiro passo foi dado com a viagem à Suíça de três procuradores federais. Amparados na documentação amealhada nas fases anteriores da operação e com o apoio da delação do empresário Julio Camargo, da Toyo Setal, que revelou ao menos três contas no exterior utilizadas pelas construtoras, os investigadores buscam entender o intrincado sistema financeiro utilizado pelo esquema cuja principal engrenagem era o doleiro Alberto Youssef.
Nesse cenário, um Recurso Extraordinário esquecido desde abril na gaveta do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, poderia contribuir com o andamento dos processos sob a tutela do juiz Sergio Moro e expandir as investigações de modo a expor todos, agentes públicos e partidos políticos, que de alguma forma foram cúmplices dessas construtoras nas últimas duas décadas. O alcance de tal manobra jurídica está em seu poder de reavivar a rumorosa Operação Castelo de Areia, de 2009. Realizada pela Polícia Federal e Ministério Público de São Paulo, a operação desarticulou o esquema de desvios em obras e pagamentos de propina a agentes públicos capitaneado pela construtora Camargo Corrêa. Em 2010, após emblemática atuação do criminalista Márcio Thomaz Bastos, a operação foi interrompida por uma liminar do ministro Cesar Asfor Rocha para, em 2011, ser aniquilada por uma decisão do plenário do Supremo Tribunal de Justiça.
A discussão no STF, da qual o ministro Barroso parece esquivar-se, resulta de uma apelação da Procuradoria-Geral da República que tenta reverter o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça de que as interceptações telefônicas utilizadas na investigação foram requisitadas apenas com base em denúncia anônima. A tese foi sustentada até agora com sucesso pelos advogados de defesa contratados à época, agora atuantes na Lava Jato, e não levou em conta o fato de os grampos terem sido autorizados pelo juiz Fausto De Sanctis com base não só na denúncia anônima, mas também em investigação prévia da PF, inclusive com compartilhamento de dados de outros inquéritos, e na delação premiada do doleiro Marco Antonio Cursini. Talvez seja o conteúdo dessa delação, hoje lacrada na Corte Suprema e com conteúdo apagado a pedido das defesas, o real motivo da celeuma causada pela Castelo de Areia. Além de contar aos investigadores os detalhes de sua atuação na Camargo Corrêa, ao lado do suíço Kurt Pickel, na OAS, com o auxílio de Joilson Santo Góes, e na Gautama, do famoso Zuleido Veras, Cursini revelou operações de câmbio ilegal executadas em favor do ex-ministro Thomaz Bastos, falecido recentemente.
Sem o imbróglio jurídico, a operação teria como resultado a avalanche de inquéritos hoje iminente por conta da Lava Jato. Antes de ter o trabalho encerrado pelo STJ, a procuradora Karen Kahn, responsável pelo caso, havia apresentado denúncia contra os diretores e doleiros citados na investigação e sugerido a abertura de muitas outras frentes de apuração graças a documentos que citam obras e agentes públicos destinatários de propina apreendidos em buscas e apreensões.
Estavam na mira as licitações dos metrôs de Fortaleza, Salvador e de São Paulo, nas quais eram mencionados valores destinados ao conselheiro do Tribunal de Contas Robson Marinho. Também apareciam contratos do Rodoanel, cuja documentação era seguida de anotações de quantias ao engenheiro Paulo Vieira de Souza, conhecido como Paulo Preto, acusado de desviar dinheiro arrecadado para a campanha do tucano José Serra, em 2010. Da Petrobras foram encontrados indícios de fraude, segundo o material da Castelo, nas licitações para as obras da Refinaria Presidente Getúlio Vargas, no Paraná, em Abreu e Lima, na Unidade de Tratamento de Gás de Caraguatatuba e na unidade da petroquímica em Cubatão. Diz a procuradora Kahn: “A operação foi precursora no levantamento de fraudes à licitação, formação de cartel, superfaturamentos de empreiteiras e atos de corrupção. Esses ilícitos foram objeto de contratações espúrias de obras e serviços públicos com os Poderes federal, estaduais e municipais, em todo o País, envolvendo praticamente a grande maioria das empreiteiras hoje alvo da Lava Jato”.
A afirmação parece encontrar amparo na realidade revelada pelo trabalho da força-tarefa da Lava Jato. Empresas, dirigentes, obras e o próprio mecanismo de operação do esquema se assemelham às fraudes detalhadas pela equipe do delegado federal Otavio Rosso ao longo da Castelo de Areia. Um exemplo são as obras de reurbanização de favelas em São Paulo, realizadas pelas gestões Serra-Kassab. Elas aparecem nas duas operações. Em 2009, foram encontrados documentos com apontamentos sobre o pagamento de propina ao então secretário de Habitação da capital paulista, Elton Zacarias, referentes ao contrato da Favela Paraisópolis. Cinco anos depois, a quebra de sigilo bancário de Alberto Youssef mostra que o Consórcio Sehab, contratado para a reurbanização da Favela Parque Real, realizou vários depósitos na conta de uma de suas empresas de fachada. Um inquérito específico foi aberto para apurar os repasses.
Possível protagonista dos próximos capítulos da Lava Jato, o ex-presidente da Transpetro, Sergio Machado, mereceu vários parágrafos nos relatórios da Castelo. Com base em documentos apreendidos na casa de um diretor da Camargo Corrêa, Karen Kahn apontou que os documentos citando Machado e a subsidiária da estatal estavam relacionados à propina paga em troca de contratos para a construção de navios no âmbito do Programa de Modernização e Expansão da Frota, o Promef. “Se infere que fora destinado a terceiro interessado um valor referente a 1% do total do contrato assinado pelo consórcio formado pela Camargo Corrêa e a Queiroz Galvão, ou seja, 27,5 milhões com a antecipação de 3 milhões em outubro de 2007”, afirma a procuradora. Na investigação atual, o ex-diretor de Abastecimento da Petrobras, Paulo Roberto Costa, cita os mesmos contratos de navios como fonte de pagamento de propina. O Estaleiro Atlântico Sul, formado pelas duas empreiteiras, aparece ainda na lista de 750 projetos apreendida na casa de Youssef e publicada com exclusividade na edição 828 de CartaCapital.
Mais do que aumentar a quantidade de provas e o leque de obras a serem investigadas, a recuperação dos documentos da Castelo de Areia ajudaria a força-tarefa a mapear e entender o sistema de evasão de divisas e pagamento de propina em contas no exterior. Em 2009, os investigadores conseguiram encontrar contas bancárias mantidas pela construtora nos Estados Unidos, em Andorra, na Suíça e em Taiwan. Desses países, em um primeiro momento, foi possível encontrar indicações de repasses de propina para ao menos duas offshore. A Tiger Information, sediada na China, teria sido utilizada, segundo o MP, para pagamentos ao Partido dos Trabalhadores relacionados aos desvios nas licitações de hospitais no Pará. Por sua vez, a Jaravy Investments, localizada na Suíça, teria sido o destino da propina paga a Machado pelas irregularidades na contratação da empreiteira para a construção dos navios do Promef.
À época da investigação, todos os citados nos documentos apreendidos negaram qualquer prática ilícita. Procurado, o ministro Barroso não respondeu por qual motivo o recurso dormita há oito meses em sua gaveta. Muito embora possa acelerar os desdobramentos da Lava Jato, a revalidação das provas da Castelo de Areia não são imprescindíveis. Os caminhos apontados, em algum momento, aparecerão no horizonte da força-tarefa sediada no Paraná. Entretanto, uma nova análise sobre a validade das provas colhidas serviria como um ótimo argumento para aqueles que classificam o julgamento do chamado “mensalão” do PT como um divisor de águas e apostam em uma mudança de postura das Cortes superiores no País, mais severa com os chamados crimes de colarinho-branco. Ao sair do limbo, as provas comprovariam que a novidade não é a existência de um cartel de empreiteiras a atuar em todos os níveis de poder, mas o compromisso do Judiciário em punir os envolvidos em desvios de dinheiro público.

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