No parto humanizado, a participação da gestante é ativa e determinante durante o trabalho de parto. A intervenção do médico só acontece num caso grave e extremo, assim como o uso de medicamento anestésico é muito reduzido. A mulher é quem escolhe a melhor posição e é autorizado o acompanhamento de um membro da família. O procedimento é assistido por uma enfermeira obstetra. Após o governo brasileiro registrar uma das mais altas taxas de cesarianas do mundo, entre os anos de 2000 e 2010, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou que essa estatística seja de apenas 15%, tanto na rede pública quanto na privada. A unidade médica que ultrapassar esse índice terá que arcar com os custos das cirurgias excedentes.
Raquel Lucy Abreu, de 19 anos, tem dificuldades para sair de casa e levar uma vida normal, consequência de um trauma causado pelo seu parto complicado no Maria Amélia, em agosto deste ano. Carla Marins, 29 anos, não consegue parar em casa e assume o máximo de compromisso possível para não pensar na trágica experiência que teve durante o seu parto e morte do seu bebê, no mês passado, na mesma maternidade. Raquel e Carla se conheceram, pessoalmente, nesta reportagem, mas elas estão em contato há mais de um mês pelo perfil do Facebook - Moms!. A cada dia aumenta o número de família revoltadas e reclamando do atendimento no Maria Amélia e os relatos mais se assemelham a um filme de
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Pais apresentaram ao JB os prontuários com os erros cometidos pela maternidade, em destaque. Entre outros documentos. Foto: Reprodução
Segundo a jovem, na sala de parto uma médica subiu em cima dela várias vezes e pressionava a barriga para baixo, forçando a saída do bebê. Como não conseguia sucesso, a médica chamou uma pediatra para ajudar na manobra e as duas subiram em cima de Raquel. "Nessa hora a cabeça do meu filho saiu, mas o resto do corpo não. Foi quando eles fizeram várias incisões sem anestesia e conseguiram salvar o meu bebê". Depois disso, Raquel foi levada para procedimentos no centro cirúrgico. No prontuário dela consta que ela teve laceração de 4 centímetros perineal envolvendo a mucosa retal. "Eu sentia queimação, muita dor, náusea, diarreia. Tinha certeza que eu ia morrer e o meu filho também. E tenho a lembrança de uma médica comentando com a outra que aquilo que fizeram comigo foi desnecessário, meu caso era de cesariana. Aí uma delas disse que 'já que a m. estava feita, o jeito era consertar'. Eu não quero nunca mais passar por isso. Eu não quero mais pensar em ter filho", desabafou Raquel.
O primeiro contato de Raquel com a Maternidade Maria Amélia foi em maio deste ano, quando ela participou de uma palestra interna sobre parto humanizado e achou interessante a proposta. Como havia feito uma pesquisa pela internet sobre a maternidade e constatou as taxas de mortalidade de recém-nascido, Raquel perguntou o motivo de tanto óbito. "As enfermeiras me responderam para não me concentrar nos números, porque crianças morrem em hospitais todos os dias e ali eu teria toda a atenção do mundo. Eu acreditei", disse ela. Nesse dia, uma grande emissora de televisão estava gravando uma reportagem especial sobre a maternidade e Raquel foi convidada para ser a 'menina propaganda" da unidade médica. "Era para o Dia das Mães. Eu contei na entrevista que estava me sentindo segura com a palestra e adotei o parto humanizado. Hoje me arrependo do que falei publicamente. E depois de tudo que aconteceu, todas as atrocidades, a direção da maternidade ainda me pediu para publicar uma foto do meu filho recém-nascido no site deles. Eu não autorizei", contou Raquel, que considera que seu momento mais mágico foi transformado num filme de horror.
No mesmo dia e local em que Carla enterrou o seu pequeno Marcel, o casal Michele da Silva e Leonardo Freitas choravam pelo mesmo motivo. Após um trabalho de parto complicado e que durou 16 horas, Michele perdeu a sua pequena Isabela no Maria Amélia. Segundo a família, a mulher optou por cesariana, mas o seu desejo não foi respeitado e quando os médicos resolveram fazer a cirurgia já era tarde. A menina nasceu com 54 cm e 3 kg, mas sem batimentos cardíacos. Isabela chegou a ser reanimada na UTI neonatal, mas quatro dias depois não resistiu a outras duas paradas cardíacas.
O menino que seria o primeiro filho de Sabrina, Paulo Henrique, entrou para as estatísticas de óbito do Maria Amélia. "O meu filho não resistiu ao tempo de espera, ficaram induzindo o meu parto normal, ministrando remédios para que as contrações aumentasse. Fiquei a noite inteira com dor, mas mesmo assim eles não pararam de me colocar esse remédio. A cada duas horas eles vinham escutar o coração do bebê. No segundo dia de internação, já não escutaram mais o coração dele. Resolveram fazer uma cesariana às pressas. Tomei dois tipos de anestesia e, por ultimo, a anestesia geral, porque quando fizeram a incisão eu ainda estava sentindo tudo. Meu sentimento na hora foi de muita revolta, tive complicações na cirurgia e meu marido teve que resolver todos os procedimentos do enterro sozinho. Infelizmente, nem conheci o meu filho", contou a vendedora.
Micaela Leandro, de 22 anos, também vivenciou momentos de desespero nesta maternidade. O caso dela aconteceu no dia 30 de agosto, quando ela chegou ao hospital com dois centímetros de dilatação e muitas dores. A equipe médica seguiu o que parece ser o protocolo da casa: disse que a dilatação não indicava trabalho de parto, passou uma receita com Buscopan e mandou Micaela para casa. No trajeto de volta para a Ilha do Governador, as dores de Micaela se intensificaram e ela entrou em trabalho de parto, mas o seu marido não tinha como escapar de um enorme engarrafamento na Linha Vermelha. Conseguiu chegar a um acostamento e pedir socorro a policiais militares que passavam pelo local em em uma viatura. De volta ao hospital, a jovem ainda passou por um parto humanizado que durou mais de cinco horas. "Como nunca ninguém me disse o que era um parto humanizado, eu fiquei apavorada, implorava por socorro, achava que ia morrer de dor e a equipe médica nem ligava, como se estivesse acostumada com aquilo. O meu filho nasceu com a cabeça roxinha, olhos inchados, placas vermelhas e uma inflamação nas narinas. Penso em nunca mais ter filho novamente. Foi traumatizante", disse Micaela. Segundo Dione, irmã de Micaela, ao reclamar do atendimento na recepção da maternidade, uma enfermeira avisou que todos os procedimentos e escolha para parto humanizado "são ordens do prefeito Eduardo Paes e devem ser seguidas".
Na opinião de Stokler, o parto humanizado pode ser uma boa escolha da gestante, mas ela precisa se preparar para esse tipo de procedimento e a equipe médica ficar atenta aos limites desse parto, para não colocar em risco a mãe e seu bebê. "Não se pode humanizar demais. Quando necessário, deve se optar logo pela cesária", disse. Stokler exemplifica a importância da cesariana nos casos em que o bebê pode nascer com 4 kg ou mais, correndo o risco de ficar com a cabeça presa na mãe. "Se o recém-nascido ficar com a cabeça para fora e o tórax comprimido na mãe, em 10 ou 15 minutos, no máximo, ele pode morrer. Então, quando isso ocorre no parto normal, o médico deve fazer uma incisão maior na mãe e salvar os dois. Por isso que a equipe deve sempre contar com o pediatra e o anestesista. Questões financeiras não devem interferir na qualidade desse serviço", disse o médico.
No caso de pacientes pouco colaborativas, que não fazem muita força durante o parto normal, Stokler explica que um caminho seguro é aplicar na gestante a anestesia peridural, que elimina em parte a dor, sem afetar a capacidade de fazer força. "A peridural não deve ser realizada em pacientes próximas do parto, devendo ser feitas no começo do trabalho de parto. Em mulheres com 9 a 10 cm o procedimento já não é mais indicado", afirma.
Secretaria municipal de saúde comenta óbitos
No mês passado, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio divulgou uma nota à imprensa comentando os casos de morte de bebês na Maternidade Maria Amélia. Segundo a secretaria, “o Hospital Maternidade Maria Amélia Buarque de Hollanda realiza cerca de 450 internações obstétricas por mês, conta com excelente estrutura em termos de equipe clínica e equipamentos e apresenta indicadores de qualidade que vêm sendo reconhecidos pelo Ministério da Saúde e por instituições internacionais, como a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Dentre esses indicadores está a taxa de asfixia abaixo de 1,5% em bebês com peso ao nascer maior de 2,5kg”. A nota finaliza afirmando que todos os casos de morte de maternos-infantis registradas na unidade são investigadas por comissões formadas na maternidade e na secretaria.
As famílias que perderam os seus filhos na Maternidade Maria Amélia procuraram a Polícia Civil nos últimos meses para fazer o registro de ocorrência. Representadas por advogados que estão trabalhando em parceria, o grupo familiar optou por um registro coletivo feito na 5a. DP (Mém de Sá), que deu origem à ação encaminhada ao Ministério Público Estadual, pedindo investigação por crime de homicídio culposo e falsa ideologia da direção do hospital. No momento, o processo está tramitando no Tribunal de Justiça.
De acordo com pais que foram atendidos na maternidade, além desses crimes e muita truculência e desrespeito da equipe médica, os prontuários foram entregues com muitos erros, como idade, na identificação dos pais, nome dos recém-nascidos, tipo sanguíneo da mãe, sexo do bebê e até dados clínicos com rasuras, prejudicando a sua avaliação médica. No prontuário de menina Isabela, filha do casal Michele e Leonardo, o sexo do bebê foi marcado como masculino.
Enquanto a ação segue o seu curso natural na Justiça, os debates sobre parto humanizado estão ficando acalorados a cada dia no Moms! Ativistas a favor do parto humanizado tentam convencer as mulheres de que este é o melhor procedimento para as futuras mamães. Por outro lado, quem passou pela Maria Amélia chama o parto normal de "parto da morte".
Em outubro, um grupo de mães fez uma manifestação na porta da Maternidade Maria Amélia Buarque de Hollanda, com o intuito de chamar a atenção da opinião pública para os fatos graves que estão acontecendo no local. Mas esse movimento é apenas o início de uma longa jornada de luta que as famílias prometem, para fazer a justiça prevalecer.
Carla Marins, Raquel Abreu, Michele Silva e Leonardo Freitas, Janif Costa, Sabrina Pimentel, Ariane Katlei da Silva, Mayara Lena, Priscila Souza, Micaela Leandro e muitos outros vão intensificar a luta, alertando sobre o atendimento "humanizado" na Maria Amélia, para que as futuras mamães não saiam da maternidade com os braços vazios, o corpo com marcas profundas e tendo no coração as palavras da música de Chico Buarque: "A saudade é o revés de um parto. A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu".
Fonte: Jornal do BrasilCláudia Freitas
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